Esses dias, em alguma leitura que já não lembro qual, topei com o conceito de heterotopia: nas minhas palavras, ou na minha interpretação, uma forma de utopia dentro do agora, do real, do cotidiano. Fui pesquisar mais sobre o tema e descobri um conceito interessantíssimo para pensar a nossa — ou, pelo menos, a minha — relação com a ficção científica.
O termo, cunhado pelo filósofo francês Michel Foucault, remete a lugares físicos ou mentais em que as regras não são as mesmas do dia a dia. A primeira imagem que me veio à cabeça foi a dos Racionais MC’s cantando:
Isso remetendo à ordenação social diferente dentro do Carandiru. Continuei minha pesquisa e não imaginei longe da obra de Foucault, que escreveu sobre o termo ao produzir sua extensa obra sobre as prisões.
Onde a ficção científica entra nisso tudo? Talvez a relação que me surgiu seja óbvia demais, e com certeza extensível a qualquer obra de ficção, especulativa ou não. Mas o conceito de heterotopia me pareceu muito íntimo às ideias de distopia e de utopia na ficção, os futuros imaginados para pior ou para melhor. Em grandes catástrofes, como qualquer obra de guerra entre humanos e máquinas ou com uma grande invasão alienígena, surge uma heterotopia, onde as relações de poder mudam, a subjetividade é completamente alterada (a própria ideia do que é ser humano é colocada em perspectiva) e há um objetivo específico: sobreviver, ou vencer a ameaça colocada. Alcançada essa meta, há obras em que a ordem social anterior é reestabelecida, e outras em que ela é substituída. Um exemplo de cada, mas poderíamos imaginar muitos: Independence Day (retorno) e Station Eleven (nova ordem social).
Não é nenhuma novidade o debate sobre como a ficção científica é um exercício de discussão sobre as questões do nosso tempo. Utopias e distopias são sempre projeções no futuro de desejos, vontades, medos e fantasias de agora. Talvez a heterotopia possa nos fornecer um caminho de projeção de outro agora no agora. Em outras palavras: fiquei com vontade de imaginar e escrever sobre heterotopias hoje, e não num amanhã longínquo. Não é uma ideia tão distante: podemos encontrar heterotopias mil ao nosso redor — uma rave, uma manifestação política, um levante indígena no sul do México, uma revolução feminista no norte da Síria. Talvez não seja também nada nova — estamos saturados de obras distópicas que se passam no (quase?) agora. Mas as leituras sobre heterotopia me deixaram desejoso e pensativo sobre histórias contemporâneas (ou quase) que sejam minimamente esperançosas.
Se é difícil pensar num amanhã melhor em tempos de apocalipse climático, genocídio palestino e curdo, tensão pré-guerra global na Europa, imaginar um mundo melhor hoje parece impossível. Exatamente por isso fiquei instigado com a ideia: há gente demais, movimentos demais, coletivos demais tentando sem serem notados, apoiados, reforçados. A literatura e a ficção científica tem potencial suficiente para ajudar a disputar esse imaginário.
E você, já imaginou alguma heterotopia contemporânea? Como ela seria? Já viveu uma? Como ela foi?
Aproveitemos para fazer do espaço de comentários desta coluna uma pequena heterotopia.
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