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A Metáfora do vampiro

Julia Cadar











Apesar de O Vampiro, de John William Polidori, ter inaugurado o romance vampiresco em 1819, a ideia de uma criatura sobrenatural que se alimenta da vitalidade de outros seres vivos é algo recorrente na mitologia popular. 


Na região dos Balcãs e da Romênia, por exemplo, a popularização de superstições vampíricas marcou o século XIX e influenciou o folclore de toda a Europa Oriental. No entanto, foi a popularidade de Drácula que sedimentou o lugar de prestígio dos vampiros na fantasia. Essa obra-prima do movimento gótico, escrita por Bram Stoker em 1897, estabeleceu muitos dos arquétipos associados à figura do vampiro, como a aversão ao sol, à conexão com criaturas da noite e a necessidade de beber sangue humano para a manutenção da imortalidade.


 O livro de Polidori foi um importante antecessor para os também clássicos, Carmilla (1872) de Joseph Sheridan Le Fanu, Entrevista com o Vampiro (1976) de Anne Rice e Crepúsculo (2005) de Stephenie Meyer. E as inúmeras adaptações da história de Stoker para o cinema, como Nosferatu (1922) de  Friedrich Wilhelm Murnau, e Drácula (1931) dirigido por Tod Browning, contribuíram fortemente para que os vampiros permanecessem no imaginário popular até o presente momento, mesmo depois de tantas transformações.


Em sua concepção original, a existência de um personagem como o de Conde Drácula foi interpretada pelo estudioso Greg Buzwell como resultado direto das ansiedades vitorianas, cujas visões puritanas sobre raça, gênero e sexualidade abriram caminho para que a figura do vampiro se solidificasse como uma metáfora para a transgressão. Afinal, em uma sociedade abafada por conservadorismos, a arte torna-se um veículo de manifestação dos medos coletivos e dos desejos inconscientes e a nova adaptação de Entrevista com o Vampiro (2022), do Prime Video, é talvez o melhor exemplo desta hipótese. 


Inspirada nos livros de Anne Rice, a série reimagina o contexto no qual Louis de Pointe du Lac narra ao jornalista Daniel Malloy a história de como conheceu e foi transformado pelo vampiro Lestat de Lioncourt. Nessa versão, Louis é um homem negro, gay e poderoso, tudo isso no auge da segregação estadunidense, mais especificamente em Nova Orleans, e por isso, a série consegue não só revitalizar a simbologia do que significa ser um vampiro nos séculos XX e XXI, mas também levantar questões inerentes à humanidade moderna.


Ao explicitar tudo aquilo que eram meras insinuações nos tempos de Stoker e afirmar a figura do vampiro como uma manifestação do medo de que as minorias sociais tenham acesso ao poder e à violência, a história reconhece os preconceitos da sociedade, bem como suas hipocrisias. Ao mesmo tempo em que o espectador sabe que Louis e Lestat são predadores brutais, não os enxergamos como seres completamente hediondos, justamente porque eles expressam uma dualidade que existe em todos nós: ora são capazes das mais terríveis monstruosidades, ora são detentores de uma fragilidade que só pode ser descrita como humana.  


Justamente por meio deste contraste entre extremos dentro do relacionamento do casal que reside um novo desdobramento nessa figura tão tradicional, na qual ser um vampiro equivale a estar em um relacionamento abusivo. Não só a transformação faz parte de um extenso ciclo no qual pessoas solitárias tentam moldar um companheiro perfeito para si próprios através de mentiras e manipulações, mas também a hierarquia de poder que existe entre o “criador” a o “recém mordido” reflete a natureza assimétrica dos relacionamentos tóxicos - sejam eles familiares, platônicos ou românticos. 


Mesmo assim, levados pela forma como todo tipo de violência é normalizada na vida de um vampiro, o espectador enxerga a dinâmica dos personagens principais como uma história de amor que tem o potencial de transcender esses problemas.

Porque Louis e Lestat não são só um ciclo de traumas e abusos que fazem com que machuquem a si mesmos e a quem amam. Eles não simbolizam somente nossa barbaridade, luxúria e medo da morte e da solidão, - que nós tanto insistimos em manter nas sombras - mas também nosso desejo de sermos melhores do que isso. 


Torcemos por esse casal tão problemático pois, como seres humanos capazes das mesmas atrocidades que eles, queremos acreditar que é possível amar um monstro e ser amado por ele.  

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5 Comments


Lucas Mascaranhas
Nov 18

Olá Júlia! Gostei da revisão histórica da figura do Vampiro, do mapeamento de suas aparições e transformações. Não conhecia a série mas, gostei do recorte de minorias dessa adaptação. Quando penso na noção de vampirismo, sempre me vem a mente os predadores sociais, esboçados por você no final do artigo, podendo também nessa lógica, abarcar personalidades narcísicas e psicopáticas. Muito informativo o artigo, parabéns pelo trabalho! :)

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A profundidade e poética com que abordou o tema são arrebatadoras, parabéns! Não assisti a série ainda, mas prevejo fortes emoções, assim como quando assisti ou li outras adaptações do mito ao longo dos anos. Talvez até mais 😉

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Obrigada!! Super recomendo a série!

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Gaia Jutz
Gaia Jutz
Jul 23

Adorei o texto! Escrevemos sobre vampiros quase ao mesmo tempo para colunas diferentes <3


Eu me apaixonei pela adaptação para série de Entrevista com o Vampiro, usaram muito bem todas essas nuances da figura do vampiro e, realmente, é impossível não torcer pelo Louis e o Lestat.

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Obrigada!! Eu amei o texto da sua coluna! Série perfeita. Ninguém nunca vai me fazer odiar o Lestat S2

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