Canibalizar o Halloween nos trópicos
- Rodrigo Fernandez

- 31 de out.
- 3 min de leitura

Uma iconografia assombra o hemisfério sul: fantasias de monstro, teias artificiais, abóboras iluminadas, “doces ou travessuras”, ocupação do espaço público. Tudo isso, hoje, depois de décadas do bombardeio cultural norte-americano, nos soa tão natural quanto as decorações natalinas fazendo alusão à neve – um fenômeno que não poderia ser mais alienígena ao calor tórrido que costuma fazer nos últimos dias de dezembro.
Reside aí um sintoma da nossa subserviência cultural e político-econômica, mas não é isso que interessa aqui. Soa ingênua a tentativa que volta e meia circula pela internet de rejeição ao Halloween em detrimento de uma inalcançável e indesejável pureza das festividades nacionais. Felizmente, os movimentos da cultura são mais complexos do que esse tipo de posicionamento parece conseguir perceber. Ao invés de rejeitar o feriado, por que não devorá-lo, assumindo as contradições e produzindo, a partir disso, uma forma nova de lidar e dar vazão aos conflitos que nos são caros?
O próprio desenvolvimento histórico da festa, afinal, com nome cristão e práticas de origem pagã, mostra que a estabilidade dessa identidade “halloweenesca” se deu apenas no século XX, com a tentativa de, por um lado, tornar a data rentável por meio da comercialização de um certo conjunto de símbolos – morcegos, aranhas, gatos pretos, abóboras etc. – e, por outro, conter a desordem e o vandalismo noturno que caracterizavam o Halloween norte-americano no fim do século XIX.
A ideia, na época, era canalizar a natureza “profana” da festividade na direção de algo que fosse lúdico, seguro e aceitável – o grande paradigma dessa transição para uma festa focada no consumo infantil foi o surgimento das práticas de trick-or-treat, por volta dos anos 1920. Antes dessa domesticação do feriado, as ruas eram tidas como perigosas e as residências eram alvo de “travessuras” dos mais variados tipos: móveis eram furtados, portões removidos, pneus furados, janelas quebradas e chaminés entupidas.
Ao longo do século XX, com a gradativa transformação do Halloween em uma festividade family – e market – friendly, o medo da violência explícita deu lugar a um apreço lúdico pelo infamiliar. Decoradas com motivos fúnebres ou vistas como assombradas, as casas norte-americanas começaram a brincar com a tensão entre o perigoso e o doméstico, teatralizando esse paradoxo que assombra o sonho americano da tranquila, segura e estável vida nos subúrbios.
Isso, claro, acontece de forma encenada, hiper-controlada e intensamente mercantilizada, sem que esses medos sejam abordados na radicalidade que mereceriam. O mais interessante parece acontecer em um movimento subsequente: a brincadeira coletiva com esses temas se torna o ponto de partida para um sem-número de outros produtos culturais que de fato evisceram certas ansiedades da asséptica vida suburbana, vide a própria franquia Halloween.
No Brasil, onde o processo de organização das cidades se deu de forma radicalmente diferente e o Dia das Bruxas só passa a ser assimilado, ainda de forma tímida, a partir dos anos 90, pode ser interessante identificar as formas a partir das quais é possível canibalizar, no sentido mesmo do movimento antropofágico brasileiro, o Halloween – assimilando suas forças e reelaborando-as para pensar (e brincar com) as nossas especificidades.
Aqui, o Halloween não chegou pela via da imigração e não se popularizou como uma ocupação das ruas; pelo contrário, se concentrou desde cedo em escolas bilíngues, shoppings centers e festas privadas – ambientes já controlados e elitizados, fazendo com que a festa perdesse, de saída, o caráter de “bagunça coletiva” para assumir a forma de um fenômeno cultural já higienizado.
Um prato cheio dessas relações, por exemplo, é o fato de que os únicos espaços em que práticas análogas ao trick-or-treat se estabeleceram com alguma solidez são condomínios fechados, com segurança e vigilância ostensiva, onde parece se querer emular a todo custo o lifestyle dos subúrbios norte-americanos.
Um Halloween à brasileira, então, poderia explorar as paranoias e contradições da nossa classe média-alta, com serial killers espreitando pelas mesas de pingue-pongue, piscinas térmicas e portarias 24h.
Não é o caso de negar a existência de uma ingerência externa que se beneficia da universalização dos seus costumes e da criação de novas reservas de mercado. Isso é ponto pacífico. O interessante, no entanto, é pensar que sempre podemos nos inserir nas brechas desse movimento que, ao mesmo tempo em que estabelece uma zona de imposição de certos códigos, instaura as condições para que eles sejam dissolvidos ou traduzidos em algo novo.
E é precisamente com essa tradução fundada pela diferença, pelo estranhamento e pelo radical contraste de elementos culturais – como a proliferação de abóboras em plena primavera – que se poderia produzir uma expressão de Halloween que dialogue, ao mesmo tempo, com as múltiplas origens do feriado, com os contornos contraditórios que a data tomou ao longo do último século e com as particularidades da formação cultural brasileira.





Perfeito, irretocável o chamado por uma reinterpretação e canibalização do Halloween.