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Chacina no Rio de Janeiro e a "Operação Contenção": um Brasil distópico que já começou

Gabriel Mello









Na manhã de 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro acordou em guerra. Helicópteros sobrevoaram os complexos da Penha e do Alemão, drones lançaram granadas, veículos foram incendiados, e 132 pessoas perderam a vida; entre elas, quatro policiais. O Estado chamou de “Operação Contenção” a ação que envolveu 2,5 mil agentes; mas a palavra que parece ficar é outra: chacina.


A justificativa oficial, “retomar o controle de áreas dominadas pelo crime”, se repete há décadas. Contudo, cada nova operação reforça a sensação de que o controle, no Brasil, é sempre seletivo: ele nunca mira os altos escalões do poder econômico, mas os corpos pobres, pretos e periféricos. A guerra ao tráfico torna-se uma metáfora desta distopia pau-brasil em que vivemos, onde a vida humana é gerida como estatística e a violência é administrada como política pública.


Policiais em ação durante a Operação Contenção, no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro. Foto: Mauro Pimental/AFP
Policiais em ação durante a Operação Contenção, no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro. Foto: Mauro Pimental/AFP. (Imagem/Reprodução: Conectas)

Desde o século XIX, a ficção científica se constrói como mecanismo crítico do presente, um gênero que usa o futuro para falar sobre o agora. Obras de autores como H. G. Wells, em "A Máquina do Tempo", e Mary Shelley, em "Frankenstein", já tratavam, no início da modernidade, das consequências do progresso desmedido e da arrogância humana diante da ciência e do poder. Ao longo do século XX, com a instrumentalização das guerras, das ditaduras e do controle tecnológico, o gênero especulativo consolidou-se ainda mais como campo de discussão do autoritarismo, da vigilância e da desumanização.


Na literatura especulativa, o termo “distopia” surge como contraponto à “utopia” do filósofo Thomas More (1516). Se a utopia representa o sonho de uma sociedade justa e harmônica, a distopia seria a descrição de um futuro corrompido, onde o poder, a técnica e a vigilância desumanizam a vida cotidiana.


Obras, como a sueca "Kallocaína" (1940), de Karin Boye, acrescentavam uma percepção mais abstrata ao tema: a vigilância sendo algo interior; sua “droga da verdade” simbolizando o sonho autoritário de invadir não só o corpo, mas o pensamento. Já em trabalhos distópicos mais divulgados, como em "Nós" (1924), de Yevgeny Zamyatin, "Admirável Mundo Novo" (1932), de Aldous Huxley, e "1984" (1949), de Orwell, pensamos um mundo em que o Estado nos vigia, controla e pune em nome da ordem.


Quando "1984" descreve um Estado que controla e elimina sob o pretexto da segurança, muitos o leem como advertência sobre o porvir. No Brasil, porém, a advertência virou rotina.


O “Grande Irmão” veste farda, helicóptero e escudo. O discurso de “força máxima” é a mesma retórica usada por governos distópicos para legitimar a eliminação dos indesejáveis: os que vivem “fora da ordem”, os que ocupam “territórios a serem retomados”.

O discurso do governador Cláudio Castro — “os verdadeiros donos desses territórios são os cidadãos de bem” — explicita o dualismo ético de um Estado que escolhe quem merece existir. A operação “com inteligência”, como disse o secretário de segurança, mobilizou drones, fuzis e algoritmos, mas não inteligência emocional, social ou política.


A tecnologia, que poderia servir para preservar vidas, é aqui ferramenta de vigilância e extermínio. Como em "Fahrenheit 451", em que a função de um corpo de bombeiros é incendiar livros e apagar memórias. No Rio, a ironia é semelhante: o aparato estatal que deveria proteger, incendeia. O fogo muda de alvo, mas mantém a mesma função: destruir, sem humanizar, o que escapa à norma. Achille Mbembe chamaria isso de necropolítica, onde a morte é utilizada politicamente para controlar e dominar grupos.



A denúncia do Ministério Público revela ainda mais esta correlação velada entre facção e Estado: policiais que colaboram com traficantes, “favores” a oficiais da PM, redes de corrupção e muitas outras. O controle não sendo meramente repressivo, mas algo sistêmico; uma ficção de ordem sustentada pela desordem institucionalizada.


A operação “Contenção” foi chamada pelo governo de “a maior da história do Rio”. Mas, em termos humanos, ela representa outra coisa: o esgotamento da ética pública. O número de mortos não é sinal de eficiência, mas de fracasso. Na lógica distópica, o Estado justifica a barbárie com a promessa de segurança, e a sociedade aceita, desde que o sangue não seja o seu.


Um apartheid disfarçado de política de contenção, onde a violência é higienizada sob o pretexto de proteger o “resto da cidade”. Este é o mesmo imaginário que molda a narrativa de que “a guerra é necessária”, que “as comunidades são territórios inimigos”. A fronteira entre ficção e realidade se dissolve quando os helicópteros sobrevoam favelas como se fossem colônias extraterrestres.

Sendo a ficção científica mais do que um exercício de futurismo, um campo onde experimentamos as consequências sociais da técnica, da política e da moral, vale a pena pensar através da especulação: se o realismo denuncia o presente, a ficção científica denuncia o possível e, por isso, ela é profundamente política.


A função da ficção científica, sobretudo a distópica, sempre foi imaginar as consequências morais da técnica e do poder. No entanto, no Brasil, a arte não precisa prever; ela precisa traduzir. Traduzir o absurdo que se tornou cotidiano, a indiferença com que se contam corpos, o modo como o Estado naturaliza o extermínio de sua própria população.


As narrativas distópicas nasceram para alertar sociedades sobre futuros possíveis. No Rio de Janeiro, infelizmente, esse futuro chegou armado, com o rosto coberto e a bênção do discurso oficial. Se a ficção especulativa é espelho do real, então já vivemos em sua superfície rachada; num país onde a distopia não é gênero literário, mas política de Estado.


E enquanto pessoas tentam se alentar no Complexo da Penha após tamanha violência, resta à literatura fazer o que sempre fez diante da barbárie: lembrar que a imaginação também é resistência.



Referências Gazeta do Povo. Rio tem cenário de guerra com mais de 60 mortos em conflito entre policiais e bandidos do CV. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/brasil/mega-operacao-100-traficantes-cv-rio-de-janeiro/. Acessado em: 30 out. 2025.

Metrópoles. Após megaoperação contra o CV, toda a polícia do RJ está de sobreaviso. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/mirelle-pinheiro/apos-confronto-com-o-cv-toda-policia-do-rj-entra-em-prontidao. Acessado em: 30 out. 2025.

BBC News Brasil. Porsche, ordens de tortura e "favor" para major da PM: o retrato do CV na denúncia que embasou operação no Rio. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0rp04y7wrxo. Acessado em: 31 out. 2025.

BOYE, Karin. Kallocaína. Estocolmo: Bonniers, 1940.

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Nova York: Ballantine Books, 1953.

ORWELL, George. 1984. Londres: Secker & Warburg, 1949.

SHELLEY, Mary. Frankenstein, ou o Prometeu Moderno. Londres: Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones, 1818.

WELLS, H. G. A Máquina do Tempo. Londres: Heinemann, 1895.


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