A maneira como produzimos e consumimos cultura mudou drasticamente. A era digital tornou a ânsia por consumo de conteúdo em uma criatura quase insaciável, o que impactou profundamente a produção cultural das últimas décadas, especialmente nas indústrias da música, do cinema e dos serviços de streaming on demand. Este artigo explora como essas mudanças têm moldado as indústrias e as implicações disso para o futuro da cultura.
Escolhi não incluir exemplos de forma intencional, para não suscitar discussões sobre qualidade de determinadas obras ou artistas, pois não é esta a questão focal. Aqui, a análise abordará processos, tendências e seus desdobramentos. Guardemos então, por um breve momento, nossos fanboys e fangirls internos para aprofundar o tema.
A forma que ouvimos música mudou, assim como a lógica de produção e distribuição. Antes, os artistas lançavam álbuns completos, que giravam em torno de um mesmo tema ou conceito central. Hoje, a tendência é o lançamento de singles, canções únicas, descoladas de qualquer construção de sentido ou narrativa, apenas para consumo imediato e posterior descarte. Isso leva os artistas a focar mais em lançar músicas individuais com maior frequência para se manterem relevantes. Esse modelo de lançamento constante também influencia a criação musical, muitas vezes priorizando faixas mais comerciais e virais que possam se destacar rapidamente (insira aqui exemplos de músicas criadas a partir de gírias bombadas nas redes sociais).
No modelo antigo, os artistas divulgavam os álbuns de maneira mais consistente também, fazendo turnês que duravam meses - até mais de um ano, apenas para promover o trabalho mais recente. Já que a tendência do momento são os singles, muitos artistas preferem apostar em estratégias de divulgação mais digitais e de consumo acelerado, subindo aos palcos apenas em festivais ou eventos com mais artistas para compartilhar os holofotes.
Existem artistas que fogem dessa lógica, mas poucos conseguem nadar contra a maré por um longo prazo. Os que conseguem, o fazem com bastante esforço, contando com bases de fãs leais e uma consolidada influência midiática. Comprar um cd tornou-se um evento raro para a maioria das pessoas. Ainda que o vinil tenha ressurgido das cinzas, ele ainda é pouco efetivo como consumo massivo, tanto pelo preço alto, quanto pela necessidade de equipamentos específicos para desfrutar dele.
Sejamos honestos, no quesito velocidade e facilidade, quem é que prefere ligar a vitrola para ouvir seu artista favorito ao invés de dar alguns poucos cliques no celular?
A indústria cinematográfica também foi profundamente impactada pelo consumo acelerado. A disponibilidade de uma biblioteca quase infinita de filmes a alguns cliques de distância tornou o público mais nichado, impaciente e autocentrado. Ou seja, cada vez mais difícil de agradar sem abrir mão daquilo que já é reconhecidamente bem-sucedido (seja por qualidade ou por simples memória afetiva). Para driblar esses obstáculos e conquistar a atenção do público, os grandes conglomerados hollywoodianos têm investido pesado em remakes e franquias.
Filmes independentes ou tidos como "mais arriscados" encontram cada vez menos espaço para serem produzidos e distribuídos em larga escala. Isso só fortaleceu o vício dos estúdios em sequências e spin-offs para expansão de universos cinematográficos já existentes, agradando à uma base de fãs já consolidada (o famoso fanservice) apenas para garantir maior retorno financeiro.
Já nos serviços de streaming on demand a prática de maratonar séries, assistindo vários episódios ou temporadas de uma só vez, mudou a narrativa e o ritmo das produções. Para manter os assinantes engajados, as plataformas investem num modelo de produção ininterrupta de novos conteúdos. Ou seja, séries e filmes têm ciclos de desenvolvimento cada vez mais curtos, com roteiros cada vez mais rasos.
Há pouca ou nenhuma preocupação com a qualidade, o importante é lançar conteúdos de forma quase sistemática, para gerar curiosidade, frisson e alvoroço nas redes sociais. Vale lembrar que, na economia da atenção, pouco importa se o público gosta ou não daquilo que viu. O comentário de desaprovação vale o mesmo que o elogio - ou até mais - para que os algoritmos continuem disseminando determinada pauta. Toda essa aceleração na produção e no consumo cultural tem um preço.
Se, por um lado, o acesso à cultura é ampliado e mais pessoas podem usufruir dela, por outro, a demanda torna-se patologicamente ansiosa por novidades constantes, comprometendo a profundidade das produções culturais e aumentando o monopólio dos grandes conglomerados, que conseguem injetar bilhões na manutenção do ritmo insano de produções, deixando pequenos estúdios e produtores independentes em imensa desvantagem.
Com o consumo de conteúdo cada vez mais raso, o público tende a ficar "preguiçoso", aceitando apenas o que é facilmente digerível.
No longo prazo, a tendência é uma pasteurização das produções culturais, deixando de fora qualquer pauta mais complexa ou inovadora. A produção passa então a responder às exigências do mercado, priorizando o entretenimento com retorno financeiro garantido em detrimento da reflexão que aborda temas mais indigestos. Sendo assim, estamos fadados à pasteurização completa ou encontraremos uma saída, um equilíbrio entre a alavanca mercadológica da relevância instantaneamente remunerada e a criatividade que inova, aprofunda e reflete sobre si?
Texto corajoso e profundo, Carolina! Incrível!! Gostei demais da descrição do processo: coerente, abrangente - e triste. Senti o efeito dessa pasteurização, dando-me novo alento para mergulhar em minha biblioteca pessoal e, inclusive, ampliá-la. Não aguento esse mais do mesmo, nem cedo à ansiedade mercadologicamente instaurada. Porém, o público, o homem-bovino em sua cerca de valores, segue o fluxo, o ritmo e a direção apontados. Brilhante!