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Donzela em apuros, heroína do povo: quando os estereótipos da mulher na ficção coexistem

ARTIGO por Bianca de Sousa





Pintura de mulher lendo livro sob luz de lâmpada por Delphin Enjolras

Era uma vez uma jovem linda que morava num vilarejo distante e sonhava com príncipe… Não, espera, vamos recomeçar. Era uma vez uma guerreira solitária que liderou seu povo para liber… Não, já vi essa história antes. Já sei, começaremos com a vilã. Nada mais, nada menos, do que a bruxa mais malvada que já existiu em todo o universo. Ai, sério. Não dá. Por que isso parece repetitivo?



A representação da mulher na ficção pode seguir uma fórmula de lacunas a serem preenchidas ao decorrer das histórias. Na maioria das vezes, na ficção de ontem e na ficção de hoje, a figura feminina é desenvolvida em uma trama em torno de um clichê binário: ou bem ou mal; ou ambição ou altruísmo; ou mocinha, ou vilã. Como se o feminino pudesse ser reduzido apenas a duas possibilidades.

É claro que, a oposição bem e mal na ficção agrega tanto às histórias que é uma fórmula complexa de evitar. E por que, também? Todo Batman precisa do seu Coringa. Só que esse assunto é para outra coluna. O que defendo no artigo a seguir é a intersecção entre as representações da mulher para além dos arquétipos que a gente já conhece; e o quanto é rico, profundo e, em minha opinião, um deleite quando a jovem linda do vilarejo também é a guerreira de batalha que lidera seu povo para liberdade, mas no final se corrompe e torna-se a vilã de toda trama.


Inaugurando a coluna de Mulheres na Ficção, nada mais justo que entender um pouco sobre como a mulher é representada na hora de contar uma história. Vamos debater o feminino na ficção mergulhando nestes estereótipos e observando como a mulher nas obras pode — e deve ser! — multifacetária.


O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE


Em qualquer narrativa, mensurar o sucesso de uma mulher ao casamento ou amor romântico a reduz a um pensamento patriarcal para lá de antigo. Gonzaga e Marques (2022) defendem, com base em um estudo da representação feminina na literatura, que o papel da mulher nas obras está atrelado ao papel da mulher na sociedade. Algumas escritoras femininas dos séculos XVIII e XIX traziam como cerne de suas histórias a complexidade do papel da mulher naquela época, mas ainda hoje podem evidenciar como as mulheres são naturalmente complexas e distantes de serem reduzidas ao que devem ser ou fazer.


Mulherzinhas, de Louisa May Alcott (1868), é um exemplo de como, por mais patriarcal que seja a representação da mulher na sociedade, o feminino é extremamente plural. “Eu”, “quero”, “gosto”, “penso” e mais centenas expressões sobre o desenvolvimento individual das irmãs March são descritos na obra, que retrata a transição de uma menina para se tornar uma mulher. Simultaneamente, o romance de Alcott expõe como mulheres necessariamente deveriam se portar, carregando sobre si o peso de serem as responsáveis pela ascensão de suas famílias, mas nunca de seus nomes.


Mas, estas obras retratam o feminino sob a ótica feminina. Quando a figura da mulher é descrita pelo homem, é impossível aprofundar toda complexidade do feminino sem reduzi-lo às fórmulas da participação da mulher nas narrativas ficcionais. “Ao retratar a figura feminina apenas com a visão masculina, o que se obtém é uma imposição mesclada a uma espécie de silenciamento, fenômeno que Bourdieu (2012) chama de ‘dominação masculina’”. (Gonzaga; Marques, 2022, p.11). E é a partir da ótica masculina sobre “quem são as mulheres nas histórias”, que podem surgir os estereótipos da mulher na ficção.



Adoráveis Mulheres, de 2019 Dir. Greta Gerwig, adaptação audiovisual da obra Mulherzinhas, indicado ao Oscar. Imagem: Divulgação Coumbia Pictures



A mocinha é o bem da ficção na forma de beleza, pureza e feminilidade. Uma forma tão comum que é quase impossível não pensar em diversos exemplos somente com essa breve descrição. Escrita para ser amada e estar ao centro da narrativa, a mocinha carrega sob seus ombros a responsabilidade de ser perfeita durante toda a história. Sofrendo, chorando e lutando pelo seu tão sonhado final feliz, geralmente atribuído ao amor romântico, casamento, maternidade, etc. Um verdadeiro conto de fadas.


Enquanto uma personagem feminina é feita para ser amada em toda sua essência e ser a representação da “pureza”, a outra, quando existe, é seu antônimo. Cruel e perversa, essa é a mulher que usa sua atração como ferramenta para tentação dos homens bons, e desespero da moça inocente. A inimiga da nossa protagonista é sedutora, fria e possui uma ambição que pode ser motivada por poder aquisitivo ou romance. Essa figura gera conflito, causa discórdia e torna a narrativa mais desafiadora para a mocinha. Mas, quando as duas mulheres são colocadas lado a lado, observamos que propositalmente são o contraste uma da outra. É como se na representação da mulher neste modelo de ficção só existissem duas figuras femininas possíveis e elas necessariamente devem ser oponentes. Ou salvadora, ou destruidora. Ou boa, ou má. Ou mocinha, ou vilã.


Essa representação vilã-mocinha é muito comum nas telenovelas latino-americanas, onde o contraste de duas mulheres serve para definir o bem e o mal entre as duas personagens principais da trama. Dessa forma, o público é direcionado para engajar na história, torcer pela protagonista e esperar o pior da antagonista, a outra mulher. Bônus de engajamento se as duas mulheres são irmãs. Outro bônus se são gêmeas e pontuação em dobro se em algum momento precisam interpretar o papel uma da outra. Telenovela ou não, nesse formato as personagens dependem uma da outra para gerar entrosamento da narrativa e serem seus respectivos obstáculos. Afinal, era incabível que o antagonista de uma mulher fosse o homem, salvo se fosse o pai, ex-namorado, ex-marido, vilão perverso ou criatura monstruosa.


HERÓI


Quando uma figura masculina causa conflito na história de uma mulher indefesa, surge a necessidade de outro homem para salvá-la. Este, é o príncipe da nossa história. Quando a mocinha precisa ser salva pelo príncipe, ela recebe outro nome, arquétipo comum do feminino na ficção: a donzela em apuros. Fraca e encantadora, essa é a presa fácil para ser a motivação do herói.

[Insira aqui nome do protagonista] jamais aceitaria este chamado para derrotar o [insira aqui criatura maligna] se não fosse por ele ter sequestrado a [insira aqui personagem feminina indefesa] dias após ele ter se interessado por ela, a dama mais bonita dos arredores. Sozinha, ela não poderia escapar da fera indomável. Cabia a este herói e mais ninguém resgatar a donzela em apuros.



Super Mario Bros. O Filme (2023). Imagem: Divulgação Universal Pictures

Mas isso era antes. Como Gonzaga e Marques defendem que a figura feminina nas histórias se adapta conforme as mudanças da mulher na sociedade, talvez a donzela em apuros não seja o exemplo mais atual. Sabe o Mario e a Princesa Peach? Dos jogos de videogame? São um didático exemplo de herói e donzela em apuros. O primeiro jogo, que contava a história do resgate de Peach, sequestrada pelo monstruoso Rei Bowser, foi lançado em 1983 e tinha a premissa do resgate da donzela. No ano passado, Super Mario Bros. O Filme (Dir. Aaron Horvath e Michael Jelenic) trazia novamente os personagens clássicos, incluindo a Princesa. Em tempos progressistas, será que a narrativa da donzela em apuros se manteve na obra? Só assistindo para saber. Sem spoilers por aqui.



DIFERENTE DAS OUTRAS GAROTAS


E falando em tempos progressistas…


Quando mulheres começam a desempenhar papéis relevantes nas narrativas além do interesse romântico e motivacional do nosso herói, ela agrega à sua personalidade características consideradas “masculinas”. Em algumas obras a mulher pode perder sua feminilidade, sua vaidade, delicadeza e interesse pelas artes. Pode rejeitar o romance, até, claro, um homem tão encantado por uma mulher “diferente”, que não resiste a salvar da solidão. Além disso, uma mulher excêntrica e cheia de personalidade, que tem interesses reduzidos aos gostos masculinos, é a “garota dos sonhos”. Isso só agrega relevância na história para ajudar o nosso herói a se tornar uma pessoa melhor. E como se eu realmente precisasse complementar, a “garota dos sonhos” geralmente é escrita por um homem.


[Insira nome do protagonista] conheceu a garota dos sonhos, a mulher da sua vida. [Personagem feminina excêntrica com nome peculiar] era linda, diferente, tinha gostos estranhos e se parecia com ele. Ele havia decidido que a partir daquele momento, os vinte segundos de interação que trocou com ela iriam guiar a história de sua vida para sempre.


Por outro lado, ainda na categoria mulheres diferentes das outras, algumas precisam ser naturalmente atraentes, sem exageros. Não escuta artista pop; ela gosta dos clássicos. Não vai a shows e festas, prefere ler, diferente das outras. Rejeição à feminilidade nesse modelo de obra leva a três lugares perigosos quando saímos da ficção: a misoginia patriarcal, declarando fútil o que for associado à feminilidade; a rivalidade feminina entre meninas e mulheres que se distanciam por terem “gostos diferentes”; e a validação masculina como régua para medir o que torna uma mulher interessante.


E QUANDO A MOCINHA É DONZELA E HEROÍNA?


Na obra de Shrek, de 2001 (Dir. Andrew Adamson e Vicky Jenson), a princesa Fiona precisa ser resgatada para quebrar sua maldição. Contudo, essa não é mais uma história clássica da princesa a ser salva. Ao decorrer da trama, Fiona demonstra naturalmente ser uma guerreira forte, independente e com uma postura de liderança cada vez mais evidenciada em cada um dos quatro filmes da saga.


Por mais que toda a obra tenha demonstrado uma postura progressista em relação às princesas de contos de fadas, Shrek Para Sempre, o mais recente dos filmes, ilustra bem a coexistência do feminino nas narrativas, mas ainda difere a Fiona Mãe-Princesa da Fiona Líder-Guerreira. Na ausência do seu príncipe encantado, ela teve de ser sua própria heroína, além de representante do seu povo em uma jornada rebelde. Essa mesma guerreira sonhava com a maternidade, tinha sua própria vaidade e o desejo de construir uma família. Na obra, esse lado se mantinha oculto porque Fiona Guerreira e Fiona Princesa não poderiam coexistir. Caso contrário, ela perderia credibilidade como heroína.


Em 2010, ano de lançamento de Shrek Para Sempre, a posição da mulher na sociedade era muito diferente daquela apresentada por Louisa Alcott no século XIX. As mudanças socioculturais da participação das mulheres exigem um formato moderno, extremamente necessário para representatividade feminina na ficção. Quando mulheres, principalmente as mais jovens, passam a ver heroínas à frente de batalhas e guiando seu próprio resgate, percebemos como as mudanças fora da ficção afetam a vida de mulheres positivamente. Percebemos, também, como expor a figura feminina com características profundas e multifacetárias gera identificação, imersão para com a obra e, claro, impacto social.


Princesa Fiona em Shrek Para Sempre (2010). Imagem: Divulgação DreamWorks

Na ficção científica, principalmente num cenário distópico, uma mulher como símbolo de liderança traz representatividade e uma nova resposta à pergunta de quem eu quero quando estou no centro das histórias em que sou protagonista?



CONCLUSÃO


Fiona em Shrek Para Sempre é apenas um exemplo das mudanças da participação feminina nas narrativas. Trazendo para o campo das distopias, a protagonista favorita da geração é Katniss Everdeen, da saga de Suzanne Collins, Jogos Vorazes (2008). Líder rebelde e voraz, Katniss demonstra que para além de guerreira e heroína da nação, uma protagonista pode sentir ódio, desprezo e medo. Pode buscar o amor, se apaixonar e sonhar com uma família. Pode ser estrategista, pode ser tentada a corromper-se e pode escolher o final feliz no modelo que quiser.


Ao final, a participação da mulher em uma ficção pode ser cada vez mais participativa quanto profundidade for atribuída à sua personagem. Assim, definir quem de fato é uma mulher em uma história vai muito além dos arquétipos que a gente já conhece bem. Depende desde o contexto sociocultural até as experiências interpessoais dos autores. Mas, no fim, as mudanças na forma do feminino na ficção passa por uma transformação a cada passo em que avançamos como sociedade, mesmo com alguns tropeços por insistência em limitar a participação da mulher nas histórias ao “isso” ou “aquilo”.


REFERÊNCIA


GONAGA, Bruna; MARQUES, Arilma. A evolução da personagem feminina: de donzela à heroína. Belo Horizonte: Revista de Divulgação Científica em Letras, 2022.

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1 Comment


Que artigo rico! É muito bom ver assim bem destrinchado um tópico bastante plural, ajuda na hora de perceber e analisar esses esteriótipos nas obras que consumimos no dia a dia, mas principalmente a buscar por obras que buscam ser algo para além disso.

E que escrita maravilhosa! sou fã de carteirinha dessa coluna ☝🏾

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