Seguirei com a fusão entre ficção científica e fantasia, iniciada no texto anterior – que pode ser lido aqui – partindo da vivência à análise de como seus elementos se integram de modo eficaz em uma experiência com alto nível de coerência interna, ou seja, o “fazer sentido” a partir da articulação entre si.
Para finalizar o tema, utilizarei novamente os jogos de interpretação como ferramenta, pois descrevem e padronizam mecânicas, que estabelecem as ações possíveis em seu contexto. Por quê? As mecânicas tornam concreto o intangível. Permitem criar, testar e finalmente sistematizar tal integração entre subgêneros literários.
Desta vez, apresentarei um novo RPG que possui lógicas mecânicas, de ambientação e de experiência completamente diversas às do anterior, Shadowrun. Diria que ambos representam lados opostos da vivência humana, equilibrando-se ao centro de uma corda bamba sobre um precipício de mesmices e variações.
O RPG Castelo Falkenstein – simplesmente Falkenstein para os íntimos – destaca-se por uma combinação singular de fantasia vitoriana, magia, estética e tecnologia steampunks, intrigas sociais e conspirações políticas. Tudo isso junto e misturado, em aventuras épicas que encorajam a interpretação com drama, estilo e elegância.
A forte influência da literatura ficcional do século XIX, e absorção de seus escritores e personagens (p.ex., estão na ambientação Júlio Verne e Capitão Nemo, Arthur Conan Doyle e Sherlock Holmes), enfatizam o desenvolvimento dos personagens pelos jogadores, incluindo a manutenção de diários pessoais, tornando em rica e envolvente experiência sua interpretação.
Curiosidade: o nome originou-se da intenção do Rei Louco, Ludwig II da Baviera, idealizador de Neuschwanstein – inspiração para o Castelo da Cinderela e de cuja pronúncia já desisti – em construir um novo castelo, mais grandioso. Superior. Falkenstein seria uma fortaleza medieval neogótica, um castelo de contos de fadas, com torres altas, interiores elaborados e vistas panorâmicas, construído no alto dos Alpes Bávaros. Nessa versão alternativa da Europa vitoriana, ele foi construído e representa a estética e o positivismo de uma casta sedenta por descobertas, pelo engatinhar da ciência e pelos maneirismos e intrigas da vida social.
Nele, a fantasia manifesta-se pela presença de diferentes raças, como dragões, anões e toda sorte de fadas que puder imaginar. Também pela magia, misteriosa, pouco codificada, expressa como parte do próprio tecido da realidade. Restrita às sociedades secretas ou às criaturas fantásticas. Já a ficção científica segue a narrativa steampunk, com objetos modernos reimaginados com tecnologia do século XIX, como armas, transportes e robôs, projetados para parecerem mecânicos e movidos a vapor.
Óbvio, mantendo-se o charme de época em tudo.
Falkenstein e Shadowrun representam estéticas e experiências literárias e de jogo bem diferentes: do tom bem-humorado, leve e romântico ao sombrio, sério e intenso. E a divergência entre seus estilos, na forma como incorporam tanto a magia quanto a ciência, além das as raças de fantasia, potencializa a inferência sobre diversos elementos, dos quais destaco os três a seguir.
Raças de fantasia
Em Shadowrun podemos lê-las como representações simbólicas da estratificação social por um lado, com anões, trolls e afins relacionando-se às camadas desfavorecidas; e de outro a ligação com a magia, com a espiritualidade, enfim, o poder dos elfos e dos dragões. Falkenstein, por sua vez, absorve as características diferenciadas e estereotipadas de tais raças operando-as de modo distinto, como funções do tecido social. Assim, anões são mestres metalúrgicos em um mundo de máquinas, veículos, armas e autômatos; fadas de níveis elevados são tecedoras de intrigas e do próprio destino da realidade junto à humanidade.
Em ambos, tais raças integram alta fantasia e ficção científica ao explicitar a construção da sociedade, a partir dos papeis que lhe são atribuídos e dos preconceitos inerentes à visão de mundo subjetiva sobre a ambientação, mais do que a ancorar a existência de magia. Se no universo cyberpunk de Shadowrun refletem temas como corrupção, desigualdade e resistência, no steampunk Falkenstein são o elo entre evolução tecnológica, intrigas palacianas e a abordagem literária fantástica.
O gerenciamento da realidade com magia e tecnologia
No primeiro, a magia é sistematizada, integrada à sociedade e coexiste com tecnologia altamente avançada e bioembarcada. Há interação direta, como na existência de tecnomantes que manipulam sistemas digitais com poderes mágicos. No outro, a magia manifesta-se de forma difusa e segregada, podendo ou não ser incorporada à tecnologia, principalmente quando construída por artífices fantásticos.
Aqui entramos na “mecânica” dos jogos, ou seja, nos pilares de suas realidades. Os dois RPG estabelecem claramente como a magia funciona: o que ela pode ou não pode fazer, quais camadas da realidade acessa, quem pode ou não acessar, como e com que esforço. Tudo de modo a equilibrar os efeitos de seu uso com os efeitos e o papel da tecnologia na sociedade. Assim, com espaço específico, relevância, limites e pontos de junção entre magia e tecnologia, cria-se estabilidade e coerência.
Descrição do cenário
No último elemento, não vejo a necessidade de elucidações individuais, apenas citar que ambos são reconhecidos pela riqueza de suas ambientações, detalhadas e repletas de narrativas. Os mundos de Shadowrun e Falkenstein tornaram-se complexos e detalhados, com extensa descrição de fatos históricos, culturas, políticas e ecologias, proporcionando uma experiência rica para leituras e aventuras.
E eis o pulo-do-gato! Ao imergir profundamente na construção do mundo e de sua história, ao submetê-las à sucessivas interações entre seus elementos – dos quais destacamos as raças de fantasia, a gestão da realidade com magia e tecnologia e a descrição do cenário – o autor adota decisões que, conforme suas criatividade e responsabilidade para com a coerência, ramificam-se, multiplicam-se e se chocam para definir os pilares singulares de sua obra.
Em essência: identificar os elementos cruciais e envolver-se de fato! Pois no oceano profundo habitam soluções de integração entre quaisquer elementos e subgêneros literários.
Falkenstein me lembra muito a liga dos cavaleiros extraordinários de Alan Moore. Excelente texto meu amigo, gostei muito da comparação das raças de fantasia em ambos os cenários o que é extremamente importante para resaltar o pontecial que as mesmas podem ter trabalhando em diferentes mundos conceituais.
Importante salientar o clima positivo e esperançoso que Castelo Falkenstein propõe, muito diferente do Mundo das Trevas (e correlatos), o cenário mais popular na época do seu lançamento. Quem tiver curiosidade a respeito de pormenores da ambientação e regras, sugiro um link: https://truthforsale.wordpress.com/2010/12/17/castelo-falkenstein-introducao-a-regras-e-cenario/