O filme brasileiro Levante (2024), da diretora Lillah Halla, narra a história de Sofia, uma jovem jogadora de vôlei que tem sua autonomia ameaçada ao descobrir uma gravidez indesejada. Lançado em fevereiro de 2024, o longa tem sido premiado por sua abordagem de temas como o aborto, a comunidade LGBTQIA+ e a realidade brasileira do dificultoso acesso aos direitos reprodutivos, sendo um dos filmes pré-selecionados para concorrer ao Oscar 2025 na categoria de Melhor Filme Internacional.

No início do filme, a protagonista é informada sobre a possibilidade de ganhar uma bolsa de estudos no Chile, que depende de sua performance no campeonato de vôlei que está próximo. A jogadora recebe a notícia com muita felicidade, e todo o time comemora essa conquista. O longa começa assim – com festa, alegria, funk e união, apresentando um vínculo sincero entre as pessoas do time.
A atmosfera festiva bruscamente dá lugar ao medo e à angústia quando Sofia descobre que está grávida. A música e a diversão somem e vemos a personagem sozinha, absorvendo a realidade indesejada e com receio de compartilhar com alguém, pois desde o início deseja interromper a gestação e desconhece os meios para acessar o aborto seguro e como se abrir sobre uma questão tão estigmatizada.
Nos primeiros momentos em que Sofia externaliza para pessoas próximas sobre a gravidez, ela é imediatamente recebida com culpabilização, sendo questionada sobre ter usado preservativo e com uma reação exasperada do pai. Esse julgamento moral, vindo inclusive de pessoas de grande confiança, é uma constante realidade no tratamento às pessoas que descobrem uma gravidez indesejada, inferindo que a responsabilidade reprodutiva deve ser somente da pessoa que gesta, e desconsiderando que métodos contraceptivos podem falhar.
Essa culpabilização pode ser uma sentença para muitas pessoas na mesma situação da personagem, pois o medo do julgamento (que pode se manifestar de formas extremamente violentas) e da criminalização frente à uma situação que esmaga sua autonomia tem consequências psicológicas e possivelmente destrutivas, podendo levar ao isolamento e a tentativas perigosas de interrupção voluntária – o que também é explorado no filme, com tentativas de induzir um aborto por meio de infecções genitais, socos e pesos no abdômen.
Aqui, a ficção emula características latentes da realidade. A criminalização do aborto no Brasil força tentativas de procedimentos inseguros de interrupção voluntária em diversos casos, resultando em hospitalizações e internações graves. Segundo dados do Ministério da Saúde (2017), 250 mil mulheres nessas condições foram hospitalizadas por ano, com cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações em estado grave¹. E levantamentos mais recentes não mostram uma melhora nesse cenário: de acordo com a pesquisa da Gênero e Número de 2023, a cada 28 internações por abortos inseguros malsucedidos, uma paciente vem a óbito e o risco de morte é 140 vezes maior do que em todas as outras categorias juntas².
Dessa forma, é evidente que a criminalização não impede a realização de abortos e, inclusive, gera um efeito contrário, pois alimenta o mercado clandestino que realiza o procedimento em clínicas ilegais em situações de insalubridade e que oferecem riscos à saúde, além de estimular tentativas caseiras arriscadas que podem levar à morte. Criminalizar, nesse sentido, é impedir que o aborto seja realizado com segurança.
Uma cena marcante do filme é quando o time de vôlei está conversando sobre a possibilidade de pagar por um procedimento seguro, mas os custos são muito altos e elus buscam maneiras de angariar fundos para pagar coletivamente. Afinal, a criminalização do aborto no Brasil é econômica, pois é possível realizá-lo de forma segura quando se tem condições financeiras para isso. O direito ao próprio corpo não é uma garantia para pessoas pobres e marginalizadas, e são essas que acabam em situações de risco e armadilhas de grupos fundamentalistas.
Nesse sentido, a escolha da protagonista respeita um recorte social importante para a discussão sobre direitos reprodutivos, sendo Sofia uma menina cis negra e periférica, entendendo que mulheres negras são as mais vulneráveis à violência sexual³ e abortos clandestinos⁴, tendo um risco maior de morrer em decorrência de um aborto clandestino pelos diversos atravessamentos que dificultam seu acesso ao aborto seguro.
A gravidez na adolescência também é um recorte necessário para entender a realidade brasileira, que reflete nos números de evasão escolar, mortalidade materna e violência doméstica. Por dia, 1.043 adolescentes têm filhos no Brasil, de acordo com dados do SUS de 2023. São mais de 40 partos por hora, sendo 2 deles de crianças de 10 a 14 anos⁵. Assim, dezenas de crianças por dia são obrigadas a gestar, parir e criar, ainda que todo ato sexual com crianças de até 16 anos seja compreendido como estupro de vulnerável pelo Código Penal.
A criminalização do aborto cria esse espaço de vulnerabilidade, e o pânico fundamentalista reforça que não há escolha frente a uma gravidez indesejada, fazendo com que muitas crianças e adolescentes sejam forçadas a levar a gestação a cabo e se tornem responsáveis pela criação de um bebê em detrimento do seu próprio desenvolvimento enquanto indivíduo em formação.
No capitalismo neoliberal, que fragmenta a coletividade e estimula a individualidade, sustentado pelo patriarcado e o racismo e com o aumento da hegemonia política da ideologia fundamentalista cristã, que amedronta e pune, ainda é comum que muitas pessoas sejam empurradas para a maternidade compulsória, mesmo que a gestação seja fruto de violência sexual. As perseguições por grupos intolerantes envolvem terrorismo psicológico, exposição e violências físicas, com incentivo a linchamentos públicos e fortalecendo o discurso que equivale o aborto ao assassinato para reforçar a criminalização.
Essas violências também aparecem no filme, quando Sofia, sozinha e em um momento de desespero, cai em uma propaganda falsa na internet para interrupção da gravidez de maneira clandestina. Ao chegar no consultório, a abordagem dos profissionais é de afirmar que ela está gestando um “bebê”, obrigando-a a ver o ultrassom e pressionando para que ela siga com a gestação. Sofia foge do consultório, mas a visita foi o suficiente para um grupo “pró-vida” ter acesso a quem ela é e uma prova cabal de sua gravidez com o ultrassom. A partir daí, Sofia passa a ser perseguida por esse grupo em seus espaços de convívio, na escola e dentro de casa.
As violências têm um claro teor ideológico fundamentalista cristão, com a depredação da casa de Sofia com uma pichação incitando sua morte caso realize o aborto, respaldada por um versículo bíblico. O retrato aqui não é nada exagerado, basta lembrar de todas as vezes em que parlamentares da bancada evangélica agiram para impedir o aborto legal em casos de crianças que engravidaram em decorrência de violência sexual, ainda que o procedimento seja um direito constitucional desde 1940 nesses casos.
Para os grupos “pró-vida”, não há limites para a violência praticada contra quem deseja realizar um aborto, mesmo que ela resulte na morte de quem está gestando. Há cerca de dois anos, vimos o caso abismal de emissários da fé protestando em frente ao hospital onde uma criança de 10 anos, vítima de abuso sexual desde os 6, estava realizando o procedimento, que já havia sido dificultado e precisou ser realizado em outro estado. A criança foi exposta sem necessidade, para ser usada em jogo político, a família foi ameaçada e o médico que realizou o aborto foi rotulado de assassino e já havia sido excomungado da igreja por realizar o procedimento em outro caso similar.
Vemos, em “Levante”, um retrato bastante próximo da realidade do direito ao aborto no Brasil. Mesmo nos casos em que é legal fazer a interrupção, ainda há diversos obstáculos até o acesso de forma digna. E não a toa trago esta análise agora, pois vivemos um acirramento da conjuntura em relação aos direitos reprodutivos, com a aprovação da admissibilidade da PEC 164/2012 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania no dia 27/11, que busca criminalizar toda forma de aborto, independente do caso, inclusive proibindo a comercialização da pílula do dia seguinte, dificultando pesquisas com células-tronco e favorecendo estupradores e pedófilos.
Esse é um retrocesso sem precedentes que, caso seja aprovado em plenário, vai ser uma condenação para todas as pessoas com capacidade de gestar, especialmente mulheres e meninas cis negras e periféricas. A gravidez se torna, então, plena responsabilidade de quem está gestando: o Estado se omite, e onde está a outra parte responsável por essa gestação?
A cena em que Sofia compartilha sobre a gravidez com seu parceire⁶ Bel é, também, o único momento em que o responsável por engravidá-la é mencionado, quando Sofia apenas afirma quem foi. Ele não existe, realmente, na vida de Sofia. Ele não é confrontado e não é representado como um personagem. Ele é um eco do privilégio patriarcal, é quem tem o direito de “abortar” ao fugir das responsabilidades.
Outro ponto interessante do filme é que ele está inserido em um contexto de vivências LGBTQIA+, com pessoas de identidades múltiplas e que constroem uma comunidade, fornecendo uma rede de apoio diante de uma sociedade que as marginaliza e funcionando como um espaço de segurança e de resistência política. A diretora Lillah Halla afirmou, em entrevista, que “para se construir um levante, é preciso da coletividade”. Halla, que estudou na Escuela Internacional de Cine e Televisión de Cuba, acrescenta ainda: “"Levante" é fruto dessa minha formação política [em Cuba], queer e feminista, que entende que é formando redes que nos levantamos. É um filme que trata de uma pulsão de vida contra uma política de morte.”
O elenco é composto por mulheres cis e trans, não-bináries e transmasculines, buscando uma verdadeira representação das diversidades de gênero e sexual na obra, na contramão de grandes produções que escalam atores cis para interpretarem outras identidades de gênero a partir de caracterização estereotipada.
O filme explora o lugar social de pessoas LGBTQIA+ desde a cena inicial, em que uma das personagens se veste como uma conservadora evangélica para furtar cremes e absorventes na farmácia sem ser colocada em evidência. Isso demonstra a classe social em que essas personagens estão inseridas, buscando maneiras de driblar a pobreza para ter acesso a itens de higiene pessoal. Esse é um ponto-chave: fala-se de vivências periféricas e identidades marginalizadas pela sociedade capitalista, atravessando questões de classe, gênero e raça.
A união do time tira a protagonista de um espaço de luta solitária e busca ajudá-la em seu desejo, sem tentar convencê-la a manter a gestação. Como afirmou o ator Loro Bardot, que faz o papel de Bel, “não é só a jovem querendo abortar: é também a ótica da treinadora, do pai, dos amigos. É uma comunidade que é afetada por aquilo." Nesse sentido, vemos a importância de uma rede de apoio para buscar meios de mudar realidades violentas para que não se torne uma situação em que a vítima está desamparada.

Sem spoilers sobre o final do filme, mas adianto que as cenas finais são impressionantes, em termos de fotografia e das sensações e emoções do fim da história, sem oferecer conclusões simples para problemas complexos e estimulando a torcida de quem assiste. “Levante” traz diversos questionamentos e temas que incomodam o conservadorismo brasileiro, colocando-se favorável à luta pela descriminalização do aborto, pelo direito à escolha e autonomia dos nossos corpos e reforçando a importância da coletividade.
Acredito que a ficção pode ajudar a nos conscientizar sobre questões materiais de opressão sistêmica, mas por si não tem efeitos avassaladores na dinâmica de produção e reprodução da vida. Dessa forma, eu encerro o texto estendendo o convite para quem sente a urgência de levantar essa pauta para que acompanhe as mobilizações da Frente Nacional pela Descriminalização das Mulheres e a Legalização do Aborto, participando na medida do possível das ações de cada frente estadual que está encabeçando essa luta – para que possamos, assim, construir um levante para exigir nossos direitos reprodutivos.
¹ Ministério da Saúde. Interrupção voluntária de gestação e impacto na saúde da mulher, 2017.
² Gênero e Número, Revista AzMina e Portal Catarinas. Aborto é cuidado, 2023.
³ Anuário Brasileiro de Segurança Pública, FBSP, 2019.
⁴ Revista Ciência e Saúde Coletiva da Abrasc, 2021.
⁵ Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), SUS, 2023.
⁶ A identidade de gênero da personagem Bel não é explícita no filme, minha escolha por retratar de forma neutra se relaciona à própria identidade do ator, que usa pronomes masculinos e neutros.
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