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Foto do escritorCarolina Oliveira

Mulheres, ciência e o trabalho doméstico

Carolina Oliveira











Desde que decidi me dedicar ao estudo do cinema de ficção científica brasileiro, a procura por personagens femininas – mulheres que tivessem algo a dizer e fazer pelo mundo – foi o meu principal foco. Ainda novata nos estudos, eu esperava encontrar – e encontrei – uma série de personagens que habitavam um mundo onde cientistas, alienígenas e guerreiras poderiam existir em paz.


Minha primeira leva de filmes cultuava exatamente esse lugar-comum, mas ainda necessário quando do ponto de vista do gênero: Dra. Lix (Norma Bengell) em “Abrigo Nuclear” (1981) de Roberto Pires, encarava uma cientista perspicaz e corajosa para salvar as pessoas de passarem o resto de seus dias em um abrigo nuclear; Krina Iris (Neide Aparecida) em “Os Cosmonautas” (1962) de Victor Lima, tinha como missão ensinar a paz e o amor aos terráqueos que procuravam na guerra uma forma de resolver suas questões, já Beta (Sylvie Fennec) em “Quem é Beta” (1972) de Nelson Pereira dos Santos, desbravava sozinha um mundo repleto de humanos-zumbis e hippies descolados, uma completa fora-da-lei.


Krina Iris explica sobre a gravidade aos tripulantes brasileiros | Fonte: Cinemateca Brasileira
Krina Iris explica sobre a gravidade aos tripulantes brasileiros | Fonte: Cinemateca Brasileira

As mulheres citadas são habitantes de filmes que, de modo geral, dialogam mais profundamente com o gênero da ficção científica de uma vertente mais “séria”. Mas é em “Os Cosmonautas”, comédia que visita o gênero para fazer graça, que a perspectiva da FC ganha uma atmosfera bem brasileira, uma vertente lúdico-carnavalesca que vai aliar um dos gêneros mais profícuos da nossa cinematografia – a comédia – às provocações da FC. No filme, transformar o Brasil em potência espacial capaz de disputar com os EUA e a URSS, enviar homens à Lua ou, de modo menos cômico, tratar as mulheres cientistas como “belas secretárias”, faz do gênero uma espécie de desculpa para fazer piada, rir de si, gargalhar do outro, mas não por isso menos significativo e sugestivo da nossa relação com a tal da ciência.


Em filmes como “Abrigo Nuclear” e “Quem é Beta?”, por exemplo, as “mulheres da ciência” – uma cientista e uma guerreira – nos parecem cair muito bem quando do ponto de vista da representatividade e de um desejo reparatório sobre as consequências do ser ou tornar-se mulher em nossa sociedade. Mas não só de cientistas e guerreiras vive a nossa FC!


Filmes mais recentes como “Lucicreide vai pra Marte” (2021) de Rodrigo César, despontam como uma brecha para pensar esses outros papéis que são assumidos pelas mulheres. Na trama, Lucicreide (Fabiana Karla), uma mulher, mãe, nordestina e emprega doméstica está farta da sua vida e, por engano, participa de um programa espacial que irá escolher uma pessoa para habitar Marte. Luci, apesar de não ser a preferida – citada pelos cientistas da Mars Mission como um equívoco –, é a que se sai melhor nas provas e acaba vencendo a disputa.


Cartaz de "Lucicreide vai pra Marte"| Fonte: Adoro Cinema
Cartaz de "Lucicreide vai pra Marte"| Fonte: Adoro Cinema

Luci opta por voltar para a sua família, contudo, esse final não é exatamente o que importa na história, e sim o fato dessa mulher provar que pode – e deve – estar em todos os lugares que ela quiser, até mesmo naqueles dominados pela ciência. “Lucicreide vai pra Marte” não é o primeiro filme de FC que trás para a frente das câmeras a história de mulheres que trabalham como empregadas domésticas ou diaristas: “As Sete Vampiras” (1986) de Ivan Cardoso; “Recife Frio” (2009) de Kleber Mendonça Filho e “Sideral” (2021) de Carlos Segundo, também podem ser estudados a partir desse recorte. Rina (Zezé Macedo) é uma mulher desbocada que desobedece os homens e faz jus a suas amizades femininas; Gleice Bernardo de França (Gleice) é obrigada a sair de seu “quarto de empregada”, local mais quente e pouco ventilado da casa para cedê-lo ao adolescente que procura por calor e aconchego em uma cidade que tornou-se fria e, Marcela (Priscilla Villela), é  faxineira da base espacial de Natal (RN) e vê a oportunidade de experimentar uma outra vida se infiltrando no lançamento do primeiro foguete brasileiro tripulado.


Marcela preste a entrar em seu próximo turno de trabalho | Fonte: Net Campos
Marcela preste a entrar em seu próximo turno de trabalho | Fonte: Net Campos

Essas três mulheres executam, por grande parte de suas vidas, um trabalho que é pouco visto, valorizado e quiçá, remunerado. Sobre esse trabalho não se escreve ou se publica – não como fazemos com os números ou as pesquisas apoiadas em metodologia rigorosas –, mas é neste trabalho invisível que a ciência se torna possível. Ele é base – alimenta, mantém organizado e provê o descanso, afinal, são essas tarefas que, somente quando não realizadas, se fazem notar de fato.


Dessa forma, talvez a ciência com a qual estamos acostumadas necessite de uma reformulação e novos paradigmas, afinal, o trabalho intelectual não acontece sozinho, somente dentro de nossas cabeças ou em frente aos nossos computadores, pelo menos não grande parte dele. O trabalho intelectual acontece na força física, no suor, enquanto colocamos a casa em ordem, separamos e preparamos o alimento, regamos as plantas, cuidamos dos cachorros, lavamos a roupa, a louça e o chão. Talvez isso seja fundamental para entendermos que Rinas, Gleices, Marcelas e Lucis são tão importantes quanto as doutoras, as Krinas e as Betas. Essa é uma hipótese que posso provar nesse texto, fruto de uma manhã abafada e na qual me dediquei às tarefas iminentemente domésticas: dar banho nos cachorros, aspirar a casa cheia de pelos e lavar a roupa – cada uma delas, rememorava teorias, mas era na ação de levantar, agachar, esticar e esquivar que eu as tornava prática, ensaiava as palavras que escreveria logo em seguida, concatenava as ideias.

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