Desde o início dos tempos, a humanidade criou histórias sobre o nascimento do universo e o alvorecer da humanidade.
No início, esse tipo de narrativa era fortemente enraizado em uma visão mitológica e religiosa do universo, o que consequentemente relegava aos seres humanos um papel passivo. Fomos moldados a partir do barro, recebemos o sopro da vida e tivemos nossos destinos traçados por coisas muito além da nossa compreensão. Fizemos histórias nas quais éramos criaturas porque ainda não tínhamos o poder de ser criadores.
No entanto, o desejo de inverter os papéis e imaginar a vida pela perspectiva do criador sempre esteve presente na sociedade e na literatura. A famosa criatura de Victor Frankenstein, bem como o Golem da tradição judaica, por exemplo, são narrativas nas quais o ser humano ponderou - de uma distância segura - sobre as possíveis ramificações de subverter o poder de Deus e criar uma vida. No entanto, conforme a ciência progrediu, uma nova maneira de interpretar esse processo surgiu, uma na qual a sociedade alcançou uma compreensão tão profunda das leis do universo que foi capaz de desenvolver seu próprio poder de criação: a tecnologia.
Os avanços tecnológicos inspiraram o surgimento de narrativas de ficção científica sobre robôs e outras formas de vida artificial. Tema esse que somente cresceu em relevância à medida em que a realidade se aproximava da ficção.
A questão central para esse tipo de narrativa não é mais a ética ou a mecânica do ato de criação em si. A pergunta já não é “e se fôssemos capazes de criar vida?” ou mesmo se deveríamos criar vida, como costumava ser com Frankenstein e os Golens. O questionamento mais atual e apropriado é “o que é a vida?”, “com que propósito a criamos?” e “como viver como uma criatura e um criador ao mesmo tempo?”.
No ensaio O Golem: do limo à lira, Lyslei Nascimento descreve o mito original do Golem, uma das primeiras criaturas feitas pelo homem, e acaba por resumir bem a dinâmica entre humanos (como criadores) e robôs (como suas criações):
“O rabino Loew construiu uma figura de barro e lhe deu vida por meio de orações e fórmulas mágicas. Criado artificialmente pelo homem, o Golem deveria proteger os judeus confinados no gueto de Praga de perseguições e campanhas de difamação, além de realizar diversas tarefas domésticas para seu mestre. Essa tentativa de reviver parte do processo cosmogônico acaba fracassando, pois o ser criado por ele é imperfeito. Embora entenda o que seu mestre diz e ordena, o Golem não fala e acaba escapando do controle de seu criador”.
Embora as famosas leis da robótica de Asimov tentassem garantir que a programação interna dos robôs não resultariam em uma tragédia para a humanidade, quando se trata da estrutura das narrativas de ficção científica, suas regras parecem dar lugar a outros quatro princípios amplamente ilustrados no trecho acima: uma relação vertical entre criador e criatura, uma capacidade essencialmente falha de se comunicarem, um senso de propósito para a criatura, que é frequentemente desafiado ou questionado; e a luta do criador para manter seu controle sobre suas criações.
É fácil identificar esse padrão nas obras de sci-fi das últimas décadas: Eu, Robô, Ex-Machina, Blade Runner e muitos outras que te convido a adicionar nesta pequena lista de exemplos. É na ficção científica que nos descobrimos como criadores além de criaturas - podemos ser deuses e dar vida a um amontoado de peças como se fossem barro.
Por isso, continuamos a nos fazer as mesmas perguntas que, ao não sermos capazes de responder como criaturas, nós, humanos, começamos a fazer como criadores.
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