
A literatura fantástica frequentemente nos transporta a reinos distantes, onde a magia se entrelaça à história e ao mito. Dentro desse vasto espectro, há dois autores de tempos e estilos distintos — J.R.R. Tolkien e Kazuo Ishiguro — que criaram mundos que exploraram não apenas o encantamento da fantasia, mas a essência da memória, do esquecimento e da identidade. Em O Senhor dos Anéis, Tolkien nos apresenta a um "Belo Reino" – para mais detalhes sobre o conceito, leia aqui! - onde a grandeza é evocada pela lembrança do passado e pela busca por preservá-lo. Já em O Gigante Enterrado, Ishiguro subverte essa relação ao construir uma narrativa imersa na névoa do esquecimento, onde a fantasia se torna o próprio véu que encobre a verdade.
E por falar em memórias, sempre fui fascinado por mitologias.
Antes mesmo de ler O Hobbit, trabalhava em uma livraria, onde aqueles volumes robustos de O Senhor dos Anéis exerciam um forte magnetismo. Quando finalmente os li, entre 2001 e 2002, encontrei não apenas uma história; descobri um mundo, sustentado por uma mitologia que parecia ter sempre existido. Durante anos, servi-me dessa riqueza narrativa como quem bebe de uma fonte límpida e fresca, inesgotável, absorvendo a grandiosidade de um Belo Reino onde a memória do passado sustentava o presente.
Mas o tempo avança e, com ele, as demandas do mercado, as urgências da vida profissional e as pressões do mundo corporativo. O universo da fantasia, que outrora me preenchera, começou a desvanecer-se. Quinze anos se passaram, e a rotina engoliu pouco a pouco aquela mitologia que antes ressoava tão profundamente em mim. Até que, sob o impacto de uma frustração profissional, senti a necessidade de buscar algo que falasse diretamente ao meu interior. Foi nesse momento que a fantasia despertou outra vez, que primeiro pensei em começar a escrever, algo que iniciei de fato, há pouco. E para escrever, é preciso ler!
Porém, desta vez, a jornada não me levou diretamente à Terra-média. Ela me conduziu por outro caminho, na literatura, através das névoas sutis de O Gigante Enterrado, de Kazuo Ishiguro.

Ishiguro, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2017, é o escritor da sugestão, do não dito, do silêncio que ecoa mais alto do que as palavras. Um estilo narrativo caracterizado pela escrita contida e evocativa, onde o subtexto carrega tanto peso quanto as palavras dispostas na página. Seu romance, ambientado numa Britânia pós-arturiana, acompanha Axl e Beatrice, um casal de idosos que viaja por uma terra envolta em uma bruma literal e metafórica, que apaga as memórias das pessoas. Então, colocara em minhas mãos um livro sobre esquecimento — que, ironicamente, despertou minha própria memória. Ao mergulhar naquela narrativa, percebi um vínculo inesperado com Tolkien: a relação ambígua entre lembrar e esquecer.
O Belo Reino tolkieniano, com sua glória e decadência, está sustentado pela recordação. Os elfos, os Dúnedain, até mesmo os hobbits carregam consigo o peso de eras passadas, resistindo ao tempo através da memória preservada. Em contrapartida, o mundo de O Gigante Enterrado subverte essa lógica. Lá, o esquecimento não é um inimigo a ser combatido, mas uma condição imposta pela própria realidade. A névoa que cobre a Britânia é um véu de esquecimento, e a questão que permeia o livro é se lembrar é sempre desejável.
Assim, se o Belo Reino tolkieniano é uma evocação do esplendor perdido e da luta contra a corrupção do mundo, O Gigante Enterrado o desconstrói de forma silenciosa, como um eco da própria perda da glória arturiana. Essa dualidade ressoou profundamente em mim. Se Tolkien me ensinara que a lembrança era um escudo contra a destruição do mundo, Ishiguro me mostrava que a memória também pode ser um fardo.
Axl e Beatrice, assim como Frodo e Sam, embarcam em uma jornada não apenas física, mas emocional e existencial. Mas enquanto a Terra-média se despede de sua era de magia com um último lampejo de esperança, a narrativa de Ishiguro nos deixa à deriva, questionando se o esquecimento não seria, às vezes, a única maneira de continuar. O fim do livro, dado esse tom, torna-se sensacional e não deixando margem a interpretações sobre a decisão de Axl.
Minha redescoberta da fantasia foi, assim, uma jornada de duplo movimento: ao mesmo tempo em que me reconectei com aquilo que um dia me fascinara, fui confrontado com a possibilidade de que talvez eu não pudesse, nem devesse, simplesmente reviver o que se perdeu. Tolkien e Ishiguro, tão distintos em suas abordagens, me mostraram que a fantasia não é apenas um refúgio, mas um espelho — e que lembrar ou esquecer pode ser, no fim, um ato de escolha.
Referência:
Ishiguro, Kazuo. O Gigante Enterrado; tradução de Sonia Moreira – 1ª ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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