Por Bianca de Sousa
Debater a representação da mulher na ficção é uma questão política. Falamos anteriormente nesta coluna sobre os reflexos da mulher na ficção e a correlação desta representação na sociedade. Concordo e reafirmo que a ficção, na maioria das vezes, é um grande espelho da sociedade. Para as mulheres, mesmo em narrativas que extrapolam o real, imaginário e especulativo, esse espelho nos faz enxergar a percepção da sociedade em relação à mulher em vários aspectos, inclusive sobre seus corpos.
Um debate atual nas produções midiáticas de ficção é a descrição e/ou apresentação do corpo feminino nas obras. A mulher, objetificada e/ou hipersexualizada na sociedade patriarcal, por muito tempo foi — e ainda é! — escrita para atender uma expectativa dos homens, dentro ou fora da narrativa. Nesses casos, a ficção reforça o papel de gênero de uma ótica machista daqui, na realidade, onde a mulher é submissa ao homem e deve atender a suas vontades, independente de quais sejam.
Então, mais uma vez, a mulher retorna para alguns “clichês” machistas enraizados na ficção. Ela ora é roteirizada para complementar a história do personagem homem, para ser sua fonte de desejo carnal ou seu interesse romântico, mesmo quando a história não tem foco no amor.
Em 2015, Reese Witherspoon discursa na premiação Glamour's Women of the Year Awards. Durante sua fala, Witherspoon fala sobre como na ficção, onde mulheres não estão envolvidas no processo de criação das personagens, a frase “o que fazemos agora?” Em um momento de crise é sempre dita pela personagem feminina para o personagem masculino, reforçando um estereótipo de inferioridade intelectual das mulheres. “Inevitavelmente chegou àquela parte em que a garota se vira para o cara e diz: ‘O que fazemos agora?!’ Você conhece alguma mulher em alguma situação de crise que não tem absolutamente nenhuma ideia do que fazer?
A atriz Reese Witherspoon, conhecida por interpretar a protagonista de Legalmente Loira (2001), foi premiada pela Glamour por criar papeis fortes para mulheres através da sua produtora, a Pacific Standard Films.
Real, imaginário e ficcional
Witherspoon fala no seu discurso sobre as problemáticas da representação feminina nas obras de Hollywood. Uma dessas problemáticas envolve a hipersexualização da mulher na ficção que, quando combinada a uma construção superficial das personagens femininas, reforça a objetificação da mulher e o protagonismo dos homens na sociedade.
Um exemplo prático de como funciona o reflexo do espelho realidade-ficção está presente na maioria das obras populares de Taylor Jenkins Reid, autora de Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, seu livro mais vendido. Jenkins tem uma caraterística interessantíssima na minha visão como leitora: sua narrativa é construída de forma tão imersiva, que quando a autora explora elementos da realidade na ficção esquecemos por alguns momentos que é uma obra ficcional.
Os Sete Maridos de Evelyn Hugo conta a história de Evelyn Hugo e sua trajetória artística como atriz na década de 1950. A escrita é como uma biografia da própria Evelyn, que conta como a construção da sua carreira em Hollywood foi baseada em poder, ambição, desejos e muitos, muitos segredos. Entre seus sete casamentos, Evelyn narra o fundamento de sua carreira e todos os seus parceiros, além de expor as problemáticas de ser uma atriz sucedida naquela época.
“Quando surge uma oportunidade para mudar sua vida, esteja pronta para fazer o que for preciso. O mundo não dá nada de graça para ninguém. Só tira de você.”
Complexa, a personagem de Taylor Reid foi escrita com profundidade o suficiente para ter um passado e motivações que transcendem a protagonista perfeita. A carreira de Evelyn tem como principal pauta sua sexualidade. Logo no início, ela usa a sensualidade ao seu favor para conseguir oportunidades no mercado. Ironicamente, ou não, mais a frente, em um momento complexo da sua carreira, Evelyn utiliza as mesmas estratégias para reforçar seu nome como atriz. Ela se submete a hipersexualização e objetificação do seu corpo para chamar atenção dos públicos e voltar aos holofotes, mesmo com as represálias conservadoras daquela época.
O livro é um grande paralelo com a realidade, onde a beleza e a sensualidade feminina muitas vezes são vistos como “moeda de troca” para oportunidades. Além disso, a narrativa explora também os motivos que levam a objetificação do corpo feminino nas obras de ficção. Para surpresa de nenhum de nós, essa objetificação existe principalmente para satisfação masculina.
Direito fundamental à dignidade
O artigo 5º da Constituição Brasileira defende a dignidade como direito fundamental. Igualdade e liberdade são outras palavras-chave do artigo. Constitucionalmente, mulheres e homens, de qualquer etnia e/ou sexualidade e religião, devem ser tratados igualmente perante a lei, e receber, como uma obrigação do Estado, uma garantia desses direitos. A objetificação do corpo feminino e a hipersexualização vai contra a palavra dignidade (Soares et. al, 2018).
Toda e qualquer representação machista e misógina que objetifica o corpo feminino deve ser rejeitada. E com o avanço da sociedade moderna, cada vez mais devemos estar atentos a elas. Desde o figurino das personagens, até a construção de suas falas, tudo deve ser observado para evitar risco à dignidade feminina na ficção em reflexo à realidade.
A hipersexualização da mulher negra
Mais uma vez inscrito nesta coluna recorte social em pautas feministas. E falar de objetificação e hipersexualização necessita de um recorte sobretudo racial. É enraizada a objetificação da mulher não-branca em todo mundo. Aqui no Brasil, a hipersexualização da mulher negra é mais um reflexo da complexidade dualística do racismo e sexismo.
“Quando focamos nas mulheres negras esse imaginário é reforçado, além de vir acompanhado de uma suposta disponibilidade sexual delas, sendo vistas então como mero objeto sexual, como se estas não fossem capazes de ocupar outros lugares na sociedade que não seja aqueles vinculados a sexualidade. A esse fenômeno social dá-se o nome de hipersexualização da mulher negra.” (Do Carmo; Rodrigues, 2021)
E na ficção não seria diferente. A descrição de mulheres negras na literatura, incitando desejo e erotismo através de qualquer outra característica física, além de reduzir essas personagens a seus corpos. O espelho para essa representação é o corpo negro como objeto de prazer, principalmente no Brasil colônia, onde as mulheres negras eram também, muitas vezes, escravas sexuais.
Hoje, esse reflexo objetificado do corpo negro feminino reforça diversas problemática da mulher negra na sociedade. Entre eles, a desvalorização da mulher negra como digna de afeto, cuidado e amor romântico para além do sexo. Cabe a nós, produtores e consumidores da ficção estarmos atentos a forma como as mulheres, todas elas, são representadas nas obras, a fim de enxergar sob esse espelho de realidade e ficção quais são as visões machistas por trás de uma escrita objetificada, a fim de garantir a dignidade feminina como direito e quebrar os espelhos que não devem nos refletir nunca mais.
REFERÊNCIAS
DO CARMO, N. A.; RODRIGUES, O. DA S. Minha carne não me define: O Público e o Privado, v. 19, n. 40 set/dez, 30 dez. 2021.
EVANGELISTA, O. et al. A APROPRIAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA NA FICÇÃO COMO ARTIFÍCIO FIRMADOR DO DISCURSO MACHISTA. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://editorarealize.com.br/editora/anais/conages/2018/TRABALHO_EV112_MD1_SA4_ID437_11052018233506.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2024.
MOESLEIN, A. Reese Witherspoon’s Moving Speech at Glamour’s Women of the Year: “Like Elle Woods, I Do Not Like to be Underestimated.” Disponível em: <https://www.glamour.com/story/reese-witherspoon-women-of-the-year-speech>.
SANTOS DE BRITO NASCIMENTO, A. EROTISMO E IDENTIDADE NEGRA NA OBRA AMADIANA GABRIELA, CRAVO E CANELA. Janeiro, v. 16, p. 113–128, 2018.
TAYLOR JENKINS REID. The Seven Husbands of Evelyn Hugo. New York: Washington Square Press, 2017.
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