por Gabriel Mello
Com que frequência você pensa no Império Romano? Eu, por motivos não muito óbvios, acabo voltando nele com uma certa regularidade. É possível dizer que o pensamento dita o poder? Talvez não desta maneira simplista, mas certamente podemos seguir e desenvolver este raciocínio. Curioso, ainda, é perceber como o poder é frágil, sendo transferido e tomado com uma certa volatilidade.
Quando o Império Romano estabeleceu sua influência e o seu poder – justamente através da disseminação do seu pensar – dificilmente ele pensaria que teria o seu poder também tomado abruptamente, e pelo intelecto. Em constantes crises, algumas mais silenciosas do que outras, a história de Roma, em toda a sua glória, passaria a ver um final semelhante ao seu começo: através da colonização do pensar.
Partindo da ideia de que o pensar efetiva o poder, não houve ferramenta mais eficiente na história humana do que a colonização, como a concretização do domínio, através do intelecto, se apropriando do que convém e destruindo o que não se mostra pertinente. O próprio Império Romano utilizou desta lógica durante seu firmamento: pegando todo um pensamento intelectual, se apropriando e, para demonstrar seu poder, o atribuindo a si. Uma pena para Atena, que além de se tornar Minerva – uma deusa que não é guerreira, mas do lar – foi completamente substituída por um clone: Belona. Mas isso é papo para outra coluna.
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Não é difícil entender que durante o final do Império Romano o seu poder político passou por mudanças decisivas. Enquanto que transição do sistema de governo republicano para o imperial do século I a.C. havia estabelecido um governo centralizado e autoritário, concentrado nas mãos do imperador e de sua corte, já no século IV d.C. o Império Romano enfrentou uma série de crises políticas, incluindo usurpações de tronos, lutas de poder e divisões territoriais, que estremeceriam, também, todas as suas produções intelectuais.
Como é de costume, a Arte reagiu a tais instabilidades; assim, com o decorrer dos séculos, mesmo dentro de um mesmo Império, refletiu curiosas representações iconográficas de Roma. Porém, antes que possamos entrar efetivamente no que nos interessa, isto é, a Arte, busquemos analisar uma peça central em toda essa história: a cristianização do Império Romano, representando o pensar; e a coexistência entre um pensamento pagão e a sua transição à hegemonia (poder) da cosmovisão cristã.
No século IV d.C., o Império Romano encontrava-se em uma encruzilhada cultural, enfrentando não apenas ameaças externas, mas também tensões internas que ecoavam nas esferas religiosas e intelectuais. Nesse cenário, o cristianismo, anteriormente marginalizado, começou a ganhar força. O imperador Constantino, em 313 d.C., emitiu o Edito de Milão, concedendo uma maior tolerância religiosa, e marcando um ponto crucial na ascensão do cristianismo. O curioso é que o imperador tomou tal decisão depois de olhar para o sol e ver uma cruz, o que ele acreditou fazê-lo vencer o confronto com Magêncio.
Mas o mais importante é perceber que essa tolerância permitiu a coexistência temporária de tradições pagãs e cristãs. Mas antes que os templos dedicados aos deuses romanos fossem substituídos por igrejas cristãs, o Paleocristianismo se manifestou, mesmo que brevemente.
No campo da pesquisa em Artes, entende-se a Arte Paleocristã como delatora desta breve coexistência entre paganismo e cristianismo, através de uma manifestação visual e cultural muito específica, de um período curto e único. Em linhas gerais, é o resultado de múltiplas intersecções, todas com facetas curiosas e que unem o prematuro cristianismo ao já vigente paganismo. Ora tratado como estilo artístico, ora como pontual transição cultural, o que mais importa é que aquilo que chamamos de paleocristianismo, sobretudo, mostra-se como ponte para a antiguidade e a nascente Idade Média.
Por isso, as iconografias paleocristãs datam justamente o início do cristianismo, por volta do século II d.C., tendo múltiplas facetas, formas de se manifestar e de se desenvolver até a plena decadência do Império Romano. Representam a arte de um povo perseguido, tidos como estrangeiros ilegais em um território que, no fim, serviu durante alguns séculos como palco para o amadurecimento de uma nova filosofia. Num momento inicial, a imagem paleocristã necessitava ser sigilosa, mas, lentamente, e a partir do século VII d.C., vingou ao ponto de se tornar hegemônica no cânone dos estudos visuais medievos.
Vale dizer que nesse ponto em específico, quando há o fim oficial da antiguidade com a queda do Império Romano, não chamamos mais o imaginário da filosofia cristã de paleocristianismo, uma vez que o termo, como já dito, é capaz de abranger um circuito muito curto do imaginário cristão que convivia com o paganismo. O que buscamos analisar e refletir aqui é justamente essa manifestação breve, que delata a transição do poder, inicialmente, através do pensar.
Em uma intensa efervescência cultural durante o Império Romano Tardio, a Arte Paleocristã parecia ser elaborada como uma testemunha visual da coexistência efêmera entre as ideologias pagãs e cristãs. Este período, permeado por uma inegável luta pelo poder político, por mais silenciosos que os conflitos parecessem ser, viu o cristianismo passar de uma crença marginalizada para uma força que moldaria o destino de todo o ocidente.
Os cristãos, inicialmente perseguidos e relegados às catacumbas, encontraram na Arte Paleocristã uma maneira de expressar sua fé de maneira sigilosa. Essas representações, datadas desde o século II d.C., refletiam a necessidade de ocultar suas crenças em um ambiente onde a prática do cristianismo não era apenas desencorajada, mas muitas vezes punida.
Em termos materiais, o poder de Roma precisava ser evidenciado na organização e construção de monumentos e obras públicas, que tinham a cidade como seu espaço privilegiado. Os antigos romanos pretendiam ordenar e integrar os lugares, que governavam, como edificadores de cidades, ou seja, transformando-os em espaços urbanos, que se constituíram em um sistema de signos, em um relato do seu poder. (BUSTAMANTE)
A iconografia paleocristã, bastante multifacetada e marcada por toda essa transição cultural, ilustra a dinâmica peculiar desse momento. Ao representar temas cristãos aos moldes pagãos, emulando a clássica estética romana, a arte servia como uma ponte visual entre duas eras, capturando a essência de uma sociedade essencialmente em transformação.
Essas imagens, inicialmente clandestinas, começaram a ganhar destaque à medida que o cristianismo se fortalecia. Com o Édito de Milão em 313 d.C., que conferiu tolerância religiosa, a coexistência entre tradições pagãs e cristãs parecia tornar-se possível. No entanto, antes que os templos pagãos fossem substituídos por igrejas cristãs, o Paleocristianismo floresceu como uma expressão única dessa convivência temporária. Mas o marco derradeiro veio em 380 d.C, com o Edito tessalônico, do Imperador Teodósio, que proclamava o cristianismo religião oficial do Estado.
Quanto mais o pensar ganhava força, mais o poder impunha o seu espaço, mas agora sob outro dominante. A arte pagã romana, que muitas vezes celebrava a beleza do corpo humano, a riqueza e o poder, foi confrontada com a nova estética cristã, que enfatizava a humildade, a simplicidade e a espiritualidade interior. A escultura romana, por exemplo, retratava deuses e deusas em poses majestosas e idealizadas, enquanto a arte cristã primitiva muitas vezes mostrava figuras humildes e piedosas, como pastores e mártires, que representavam uma nova compreensão da santidade e da devoção.
Com isso, vale a pena citar que um aspecto muito importante da colisão entre a filosofia cristã e a cultura pagã romana foi justamente a atitude em relação à adoração de imagens.
Enquanto a religião pagã romana valorizava a idolatria e a veneração de estátuas e imagens de deuses e deusas, que eram consideradas representações físicas das divindades e uma forma de acesso à sua proteção e favor, o cristianismo primitivo apropriava-se dos modelos, mas, no momento da sua legalização dentro do império tardio, passou a rejeitar a adoração de imagens como uma forma de idolatria, enfatizando a adoração interior e a conexão direta com Deus.
Neste ponto é importante fazer uma pausa para se compreender uma mentalidade específica. Era comum aos cristãos primitivos replicar os modelos pagãos a fim de manter, de forma mais segura, os seus ícones, (como é possível ver na comparação das duas esculturas abaixo, sendo uma do itinerário cristão primitivo e outro do já vigente paganismo romano). Curioso, ainda, é perceber como estes modelos foram completamente negligenciados na Idade Média dentro da iconografia sacra cristã.
Essa diferença de atitude entre cristãos e pagãos em relação à adoração de imagens influenciou a forma como a arte cristã primitiva foi desenvolvida. Inegavelmente, os cristãos preferiam representações simbólicas e alegóricas, como o peixe ou o bom pastor, em vez de retratos realistas de figuras divinas aos moldes greco-romanos.
No entanto, e à medida em que o cristianismo passou a ser tolerado, a cultura visual cristã começou a assimilar elementos da cultura pagã romana de uma forma tão sutil que pouco parecia recordar aos postulados antigos. No entanto, as referências sempre faziam-se presentes, mesmo de forma sigilosa.
A reflexão que eu tiro, particularmente, como alguém que realmente acha fascinante esta tão específica coexistência entre duas cosmologias tão antagônicas (de forma programada, claro) e que, por isso, acaba voltando a pensar no Império Romano com frequência, é que o pensar sempre foi e possivelmente sempre será a forma mais efetiva de demonstrar poder. O pensamento pode ser tão abstrato que passa despercebido, até que você se pegue agindo de maneira completamente desproporcional àquilo que algum dia você estabeleceu como verdade.
Referências
BEZERRA, Juliana. Constantino. Toda Matéria, [s.d.]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/constantino/. Acesso em: 8 jan. 2024
DA CUNHA BUSTAMANTE, Regina Maria. Práticas Culturais no Império Romano - Entre a Unidade e a Diversidade.
DUARTE, Cláudio Monteiro. Iconologia e iconografia no estudo da arte paleocristã. Temporalidades, v. 7, n. 2, p. 538-560, 2015.
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