Um artigo por JÚLIA DE ALENCAR
RESUMO
Este artigo mergulha na mitologia grega de Pandora, a primeira mulher criada pelos deuses, e explora como essa narrativa mitológica influencia a presença feminina na tecnologia e na ética da inteligência artificial. Ao analisar estereótipos de gênero arraigados, destacar mulheres notáveis na história da tecnologia e discutir os desafios contemporâneos, busca-se reimaginar o papel da mulher na era das máquinas conscientes. A inclusão de perspectivas femininas na ética da IA e na criação de máquinas conscientes é fundamental para garantir a igualdade de gênero e a diversidade no campo da tecnologia.
INTRODUÇÃO
Na mitologia grega, a mulher nem sempre foi condição para a existência humana. Na verdade, a primeira população humana, segundo as narrativas mitológicas dos antigos helenos, era inteiramente masculina e assexuada. A primeira mulher foi criada pelo rei dos deuses como forma de punir a humanidade. Nesse contexto, Pandora, a primeira mulher, foi criada por Zeus e abençoada pelos deuses com diversos dons, um deles sendo a curiosidade, razão pela qual é frequentemente lembrada. Além da infame caixa, originalmente jarro, traduzido erroneamente do texto original de Hesíodo, Pandora liberou os piores males do mundo sobre a humanidade.
Ao associar a história de Pandora às vidas de mulheres reais e o papel da mulher ao longo da evolução da civilização até chegarmos à atualidade, é possível reavaliar como as mulheres se encaixam em um cenário tecnológico em rápida evolução. Este artigo busca explorar como a narrativa do mito de Pandora reflete e influencia a presença feminina na tecnologia e na Inteligência Artificial.
PANDORA E OS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO
Ao mergulhar na mitologia e examinar os desafios que as mulheres enfrentam na indústria da tecnologia, bem como seu crescente impacto na ética de IA, revelamos a importância de observar Pandora por uma perspectiva diferente da originalmente pretendida pelo autor, posicionando a protagonista não como uma portadora de males, mas como símbolo de determinação, potencial e curiosidade, a característica responsável por sua infama e imprescindível para o método científico, a ferramenta responsável pela evolução da ciência como um todo.
A história de Pandora é repleta de simbolismo e complexidade. Pandora, a primeira mulher criada pelos deuses, foi moldada à perfeição, recebendo dons e maldições das divindades olimpianas. Seu início como uma criação celestial, a torna uma figura intrigante, à medida que ela é associada à curiosidade, uma característica que a levaria à abertura do jarro proibido. Este continha todos os males e aflições do mundo, representando os desafios inerentes à experiência humana.
Contudo, a interpretação dessa narrativa mitológica nos leva a examinar estereótipos de gênero que a permeiam. Pandora, muitas vezes, foi retratada como uma figura cuja curiosidade levou à desgraça do mundo. Outras vezes, Pandora foi presenteada também com esperteza e dissimulação, abrindo a caixa não tanto por curiosidade, mas por malícia. Isso reflete um estereótipo profundamente enraizado que associa a curiosidade e o desejo de conhecimento a um aspecto negativo, e por extensão, à feminilidade. No entanto, esse estereótipo não apenas limita a figura de Pandora, mas também lança luz sobre a relação entre a mulher moderna e a tecnologia avançada.
Em um mundo impulsionado por inovações tecnológicas e inteligência artificial, é essencial reconhecer que a curiosidade, a busca por conhecimento e a vontade de explorar o desconhecido são traços humanos que transcendem qualquer distinção de gênero.
Assim, Pandora e sua história nos convidam a reimaginar a mulher moderna não como uma mera portadora de males, mas como um agente de descoberta e inovação na era das máquinas conscientes. Essa reimaginação é essencial para superar estereótipos de gênero arraigados e promover a igualdade de oportunidades e contribuições significativas das mulheres na tecnologia e na ética da inteligência artificial.
MULHERES E TECNOLOGIA
A história das mulheres na tecnologia é rica e repleta de figuras notáveis que desafiaram os estereótipos de gênero e contribuíram significativamente para o campo. Uma das primeiras pioneiras da computação foi Ada Lovelace, a Condessa de Lovelace, que viveu entre 1815 e 1852. Filha do famoso poeta Lord Byron, mas jamais resignada a viver na sombra de seu pai, Ada Lovelace é amplamente reconhecida como a primeira programadora da história. Seus algoritmos revolucionaram o campo da matemática e possibilitaram que a máquina de Charles Babbage, muito similar, em conceito, aos computadores atuais, realizasse cálculos complexos, estabelecendo assim um marco na programação de computadores. Sua história demonstra que as mulheres sempre estiveram envolvidas na tecnologia e na ciência, desafiando os estereótipos de gênero de sua época. Outra figura notável é Grete Hermann, filósofa PhD em matemática do início do século 19, que desempenhou um papel crucial no desenvolvimento da álgebra computacional. Seu trabalho simplificou significativamente os cálculos matemáticos simbólicos, um elemento essencial para a operação dos computadores modernos.
Grace Murray Hopper, uma cientista da computação com doutorado em matemática e física, é outra pioneira na história da tecnologia. Ela foi fundamental na criação da linguagem de programação Flow-Matic, que levou à criação do COBOL (Common Business Oriented Language). Hopper também é creditada por ter usado pela primeira vez o termo "bug" para se referir a um problema em um computador, quando, na realidade, um inseto estava afetando a máquina. Essas mulheres notáveis, juntamente com muitas outras, desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da tecnologia e na superação dos obstáculos de gênero.
No entanto, ainda hoje, as mulheres enfrentam desafios na área da tecnologia. É importante destacar que a desigualdade de gênero persiste em campos como a ciência da computação e a engenharia, e muitas vezes começa na infância, com estereótipos de brinquedos "para meninos" e "para meninas", moldando as expectativas. Instituições e organizações, como o Museu Nacional da Computação da Inglaterra e a Mulheres na Tecnologia no Brasil, estão trabalhando para mudar essa realidade, incentivando mais meninas e mulheres a se envolverem na tecnologia e nas ciências. Desmistificar as chamadas "profissões femininas" e "profissões masculinas" é essencial para alcançar a igualdade de gênero nesse campo. Os pais têm um papel crucial nessa mudança, apoiando e estimulando suas filhas a explorar suas paixões e interesses, independentemente das expectativas sociais.
É fundamental encorajar as meninas a escolherem carreiras com base em suas habilidades e paixões, em vez de seguir modelos tradicionais ou aceitar preconceitos infundados. Portanto, ao reconhecer a história e as contribuições das mulheres na tecnologia, e ao criar um ambiente em que as meninas possam explorar seus interesses livremente, estaremos reimaginando o papel da mulher na era das máquinas conscientes e promovendo uma sociedade mais igualitária e diversa.
Existe, porém, uma realidade preocupante no campo da inteligência artificial e da tecnologia. Como demonstrado em um estudo da Universidade da Virgínia, os algoritmos que impulsionam a inteligência artificial podem inadvertidamente reforçar preconceitos e estereótipos de gênero. Isso é exemplificado por um caso em que uma máquina, treinada em uma base de dados enviesada, concluiu erroneamente que 84% das pessoas em imagens relacionadas à culinária eram mulheres, quando, na verdade, apenas 33% eram. Esse viés de gênero nas máquinas é uma questão crítica, pois demonstra como as tecnologias baseadas em big data e algoritmos podem agravar a discriminação.
VIÉS DE GÊNERO NA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Sobretudo, a análise do comportamento das máquinas revela que elas podem se tornar mais sexistas, racistas e classistas devido à identificação de tendências subjacentes nos dados usados para treiná-las. Exemplos recentes incluem o caso do robô Tay da Microsoft, que se tornou um veículo para discursos de ódio e apologia do nazismo em menos de 24 horas após interagir com usuários do Twitter. Além disso, várias empresas de tecnologia, como Google, Nikon, Apple e Amazon, enfrentaram críticas por seus algoritmos que perpetuam preconceitos raciais e étnicos. Mulheres enfrentam desigualdades no recebimento de anúncios de emprego bem remunerados no Google, e programas de contratação tendem a favorecer nomes associados a pessoas brancas. Essas tecnologias também têm implicações profundas no sistema de justiça, onde algoritmos de risco predizem reincidência, muitas vezes com base em critérios raciais.
A constatação de que algoritmos e IA podem amplificar preconceitos sociais ressalta a necessidade de regulamentação e transparência. Para combater esses preconceitos e estereótipos, especialistas pedem aos reguladores públicos que revisem e monitorem os sistemas algorítmicos, garantindo que a tecnologia seja mais equitativa e ética. À medida que a inteligência artificial continua a desempenhar um papel crescente em nossas vidas, é crucial enfrentar esse desafio para criar um ambiente tecnológico mais justo e inclusivo.
A necessidade crescente de diversidade de gênero na ética da inteligência artificial reflete uma mudança fundamental na maneira como abordamos a criação e o desenvolvimento de sistemas de IA. À medida que os debates éticos em torno da IA se intensificam, muitos reconhecem que a perspectiva feminina desempenha um papel fundamental na tomada de decisões éticas.
As vozes femininas trazem uma riqueza de experiências e valores que podem influenciar positivamente a construção de sistemas de IA mais justos e equitativos. Iniciativas e organizações que promovem a inclusão das vozes femininas na discussão sobre IA estão ganhando destaque. Elas buscam envolver mulheres em todas as etapas do desenvolvimento da IA, desde a concepção até a implementação. Essa inclusão não apenas aborda a desigualdade de gênero no campo, mas também enriquece o discurso ético em torno da IA, garantindo que os sistemas sejam projetados para atender às diversas necessidades e preocupações da sociedade como um todo. O reconhecimento da voz feminina na ética da IA representa um passo crucial em direção a sistemas mais éticos, justos e sensíveis.
A criação de máquinas conscientes muitas vezes é envolta em mitos e narrativas culturais que perpetuam estereótipos de gênero e desafios subjacentes. Em muitas histórias e representações populares, a figura do cientista ou engenheiro que cria uma máquina consciente é frequentemente masculina, reforçando a ideia de que a inovação tecnológica é um campo dominado por homens. No entanto, a realidade é muito mais diversa e promissora.
Mulheres notáveis na pesquisa de IA e robótica, como Cynthia Breazeal, Rana el Kaliouby e Fei-Fei Li, têm feito contribuições significativas para o avanço da tecnologia. Cynthia Breazeal, por exemplo, é uma pioneira na criação de robôs sociais, desafiando a ideia de que a tecnologia é desprovida de empatia. Essas mulheres não apenas rompem barreiras de gênero, mas também trazem narrativas alternativas que celebram a criatividade e inovação feminina na construção de máquinas conscientes, desafiando estereótipos e expectativas de gênero. Suas realizações destacam a importância de uma abordagem diversificada na criação de máquinas conscientes, incorporando perspectivas que podem moldar um futuro tecnológico mais equitativo e inclusivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mito de Pandora, que narra a história de uma mulher que abre uma caixa proibida, liberando uma série de males no mundo, também pode ser visto como uma narrativa que ecoa ao longo da história da tecnologia e da inteligência artificial. Assim como Pandora desafiou as convenções, as mulheres na tecnologia desafiam estereótipos e abriram caixas de inovação e criatividade que enriqueceram nosso mundo. Da mesma forma, as máquinas conscientes, frequentemente personificadas como criações masculinas, podem ser remodeladas por perspectivas femininas e narrativas alternativas que celebram a diversidade e desafiam os estereótipos de gênero. Ao reconhecer a importância das vozes femininas na ética da inteligência artificial, e ao combater os vieses de gênero nas máquinas, estamos caminhando na direção de uma era de máquinas verdadeiramente conscientes, onde a igualdade de gênero e a diversidade são os alicerces da inovação tecnológica. É um lembrete de que as mulheres têm, ao longo da história, demonstrado uma força inquebrável ao enfrentar desafios e mudar o curso da tecnologia, desafiando os mitos de Pandora e moldando um futuro mais promissor.
Conteúdo presente na edição de NOVEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.
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