A subversão do herói em Messias de Duna
- André Agueiro

- 24 de set.
- 4 min de leitura

Admirar o universo de Duna é quase que unanimidade entre os apreciadores da ficção-científica, além de ter impactado imensamente o gênero nas décadas após sua publicação. O primeiro livro da saga é tão complexo e bem construído que fui fisgado por este duas vezes, em duas leituras separadas e com quase dois anos de diferença. Após compreender grande parte do que estava acontecendo ali e assimilar vários aspectos desse universo tão rico, chegou a hora de encarar Messias de Duna, a continuação – e finalização – do arco de Paul Atreides em Arrakis.
Poderia dizer que o choque não é grande ao descobrir o presente estado em que Paul se encontra, por já sermos indiretamente avisados pelos próprios sonhos dele no primeiro livro, nos quais o Jihad conduzido pelos Fremen em seu nome seria responsável por uma destruição quase que sem limites de outros planetas ao redor da galáxia.
Muitos que leem o segundo livro não entendem a diferença de abordagem realizada pelo autor, que no primeiro nos mostra a jornada do herói de Paul ao se encontrar e se estabelecer como líder de um povo, o conduzindo à liberdade, enquanto que, nessa continuação, o leitor se depara com debates políticos e filosóficos sobre a dualidade do papel que Paul ocupa naquele momento.

Seria possível, Paul se perguntou, que o oráculo não predissesse o futuro? Seria possível que o oráculo criasse o futuro? Teria exposto sua vida a uma teia de fios subjacentes, se deixado capturar ali, naquele despertar, tempos atrás, vítima de um futuro-aranha que mesmo então avançava para cima dele com suas mandíbulas apavorantes? — p. 47 [Editora Aleph].
Doze anos após os eventos do primeiro livro, Paul se vê mais do que nunca questionando suas ações e seus impactos no Império. O Jihad promovido em nome dos Fremen agora era responsável por colonizar outros planetas e impor sua cultura de adoração a Muad’Dib, este sendo "o único capaz de salvar o futuro da humanidade", mesmo que seus métodos fossem questionáveis. Somos apresentados aos pensamentos íntimos de Paul, que revelam sua consciência sobre a consequência de seus atos após tomar o poder, mas que, ao mesmo tempo, revelam seu desconforto com o papel que lhe foi dado. Teria Paul se tornado mais um líder aristocrático e despótico, em vez de manter a figura de “herói” que lhe é atribuída no começo?
Paul é confrontado com esses pensamentos frequentemente enquanto reflete as consequências de ter assumido o papel de messias dos Fremen. Com os poderes da presciência o alertando sobre o que viria, ele se vê preso nesse lugar que se colocou, pois se não o tivesse assumido, o futuro poderia ser pior ainda.
A frustração o enredava. Sentia a pressão do inconsciente-massa, aquele golpe veloz de humanidade que cortava seu universo. Acometiam-no com uma força semelhante à de uma gigantesca pororoca. Ele detectava as vastas migrações que operavam nas relações humanas: torvelinhos, correntezas, torrentes genéticas. Não havia barragem de abstinência, ataque de impotência nem maldições capazes de detê-la. — p. 129.
Há boatos de que Herbert escreveu Messias de Duna pois se viu incomodado com grande parte dos leitores tendo um olhar não-crítico em relação à Paul, o colocando como um herói tradicional e de boa virtude, que só queria o bem do povo Fremen. Nota-se neste segundo livro a desconstrução do líder carismático e altamente popular que chegou ao poder por meio de artifícios religiosos aplicados por séculos, e que Paul, por mais “boas” que suas intenções tenham sido, acabou tendo o mesmo destino que outros líderes autoritários que ele mesmo menciona, como Gengis Khan e Adolf Hitler — p. 110-11.
Frank Herbert não precisava ter escrito Messias de Duna para mostrar mais uma vez o lado perigoso de levar ao poder um homem por meio de uma narrativa messiânica construída há séculos passados e que trazia esperança a um povo que tanto ansiava pelo momento em que as profecias se realizariam. A forma sórdida em que as Bene Gesserit introduziram o fator do messias na cultura Fremen foi responsável pela chegada de Paul ao poder, não porque ele era um messias ou um escolhido. É certo que ele tinha poderes que nenhum homem deveria ter acesso, e isso o fazia diferente, no entanto, isso não justifica a adoração dos leitores por suas ações aproveitadoras.
A desconstrução dessa figura heróica é abordada delicadamente na obra, e é fascinante perceber que a lógica aplicada na manutenção dos poderes de Paul em Duna é a mesma que mantém líderes autoritários no poder atualmente: a religião e o seu poder de distorcer a realidade e os fatos que acontecem nela. Por meio de seus fiéis adoradores, Paul e seu jihad dizimaram milhões de pessoas, tudo isso porque Paul via esta como sendo a única maneira da humanidade ser salva, mas será que, entre tantos futuros, essa era realmente a única alternativa?
É certo dizer que Paul e seu lugar em Duna é tão complexo que ele não pode ser chamado nem de herói e nem de vilão. Suas ações são questionáveis e duvidosas, nunca é explicitado se o que ele faz é apenas por causa da presciência ou porque ele de fato sente um pouco de prazer naquilo tudo — mesmo que sua consciência nunca o deixe em paz por ser o principal responsável por tanta crueldade. Esse é um debate muito rico levantado por essa leitura, e se você, assim como eu, é fascinado pelo primeiro livro da saga e por sua filosofia, irá encontrar aqui questionamentos ainda mais profundos, que desfazem a imagem heroica de Paul por inteiro e o expõe como ele é: um ser humano perdido, tentando encontrar significado e justificativas para suas ações que levaram a humanidade a um destino cruel e devastador.





André, parabéns pela abordagem corajosa, crítica e, por isso, atual. Descreveu em 4 min o porque a ficção especulativa é importante em um mundo que cala diante de um racionalismo apenas figurado, acrítico e manipulável. Incrível!