Conheça Herald’s Song: Entrevista com Cora . Het . Bengel
- Nicolas R. Aquino
- há 3 dias
- 6 min de leitura
Atualizado: há 2 dias
Cansado de trabalhar seis dias por semana na manutenção de portais interdimensionais, Marcel sonha apenas com a aposentadoria. Mas o que parece um desejo “simples” se complica quando um “filhinho de papai”, Callahan, é designado como seu novo parceiro — e isso tudo em meio a Dissonâncias que ameaçam desestabilizar o tecido da realidade. Com doses de inquietações enquanto seres humanos, magia, múltiplas culturas e personagens carismáticos, Herald’s Song é a mais nova webcomic do trio Cora, Het e Bengel. Tivemos um bate-papo sobre o processo de criação da história, suas inspirações, o trabalho coletivo e o universo que pretende se expandir com humor, afeto e importantes questões da classe trabalhadora.
Segundo Cora, a história pode ser resumida como:
“É a história de um trabalhador CLT cansado, obrigado pela chefe a lidar com um filhinho de papai enquanto tenta manter portais interdimensionais funcionando. O sonho dele é se aposentar, mas nem no mundo da fantasia isso parece possível.”
Het complementa que o universo da obra é povoado por múltiplas dimensões conectadas por portais, cuja manutenção é feita por trabalhadores — como o nosso protagonista Marcel. “Além da pressão do trabalho, ele ainda precisa treinar um novato que não facilita em nada”, diz. Para Bengel, a essência de Herald’s Song está no cansaço: “Pra mim, é a história de um homem cansado, que só quer parar de trabalhar. E, infelizmente, ele não consegue isso nem vivendo em um mundo cheio de magia.”

A ideia do quadrinho surgiu a partir de uma demanda de concurso oferecido pelo Webtoon, uma plataforma de quadrinhos digitais gratuita e focada em obras no formato vertical para leitura no celular. Lá, autores do mundo todo publicam histórias em vários gêneros, como romance, ação e fantasia, mas, para além do concurso, encontraram influências em seus repertórios pessoais e trabalhos anteriores.
“A inspiração veio de um mangá chamado When a Cat Faces West, da autora de Mushishi”, conta Cora. “É uma história sobre trabalhadores que lidam com distúrbios temporais como se fossem só mais uma parte da rotina. A gente achava muito legal essa abordagem do fantástico com uma pegada casual.” Het comenta que a equipe já curtia essa vibe de tratar o fantástico dentro de uma realidade cotidiana, algo presente também em outros projetos individuais do trio, como Maldição (Cora), Sétimos Filhos (Het) e Nastya, o Monstro (Bengel).
“Talvez seja reflexo também do esgotamento coletivo dos quadrinistas no Brasil”, brinca. Bengel acrescenta que havia uma vontade muito clara de criticar o sistema de trabalho: “Todo mundo cansado, estressado… então pensamos:
por que não usar uma história de fantasia para falar disso? Mostrar que até o comum pode ser mágico.”
Cora complementa que havia também uma preocupação prática: “Se fosse selecionada no concurso, a história precisava ser viável de executar. A gente queria algo com bastante espaço de exploração, ambientes variados e uma estrutura episódica. Isso não só tornava o projeto realizável.”
Sobre o processo de trabalho coletivo, as mentes criativas são unânimes ao dizer que a boa comunicação e o respeito pelas limitações de cada um foram fundamentais. Cora e Het estrearam na dinâmica em equipe dentro dos quadrinhos com esse projeto, enquanto Bengel já tinha experiência prévia. “Uma das maiores forças do grupo foi essa divisão de tarefas bem alinhada. A gente sabia que todos estavam ocupados com mil coisas, então organizamos o fluxo de trabalho de forma que qualquer um pudesse cobrir o outro se precisasse”, afirma Cora. Het destaca o nível de organização: “A gente montou um sistema quase ‘fordista’, com instruções detalhadas em cada arquivo. Mas o mais importante foi aprender a abrir mão do preciosismo.” Bengel reforça que o processo foi pautado por uma troca contínua e madura: “Todo mundo sabe dar e receber feedback, e ninguém leva pro lado pessoal. Se alguém esqueceu de anotar algo, a gente aponta, resolve e melhora.”
Com bom humor, revelam que o universo de Herald’s Song começou a ser traçado em um brainstorming caótico onde as únicas certezas eram:
“precisa ter um gay e um furry.” Daí nasceu a ideia de múltiplas dimensões — afinal, se você quer justificar a existência de uma criatura antropomórfica no meio da história, nada mais justo do que criar universos paralelos.
A escolha de quem faria o quê dentro do time também partiu de uma lógica bem estratégica, quase como montar um grupo de RPG: cada um escolheu sua classe com base nos talentos. Isso definiu tudo — não só quem ia desenhar, mas o tom da história, o estilo visual e até o ritmo narrativo. “A ideia foi entender onde cada um se garante mais. Se a gente está num concurso e quer levar isso a sério, tem que jogar com as cartas certas.”
Quando perguntados sobre que tipo de fã pode curtir a leitura, as comparações são variadas, mas todas certeiras: Marionetta, Loki, Umbrella Academy, Jujutsu Kaisen (especialmente o Nanami) e até One Piece, principalmente pela construção de mundo e abordagem de temas humanos. Para além disso, o universo de Herald’s Song promete diversidade e reflexões profundas.
“Trabalhamos com culturas e abordagens diferentes, tanto por nossas experiências pessoais quanto pelas propostas que temos como autores”, diz Cora. “Pode esperar questionamentos políticos e filosóficos.” Het enfatiza a centralidade da classe trabalhadora na história: “Trazemos tanto o lado positivo — como certos direitos que temos — quanto o lado das precariedades.” Bengel reforça: “Não é um shōnen de batalha. Apesar de termos cenas dinâmicas, não é sobre personagens com superpoderes enfrentando inimigos cada vez mais fortes. É sobre gente que se vira na base da esperteza e da resistência.”
Por fim, falamos sobre o mercado de quadrinhos e o cenário atual. Para Het, há um otimismo contido: “A expansão da internet e o surgimento de plataformas onde você pode divulgar suas histórias gratuitamente permitiram um acesso maior à produção independente. Mas é importante dizer que nada disso garante retorno. Ainda lidamos com questões como investimento, marketing, gráfica, preço de papel, divulgação... tudo isso pesa, especialmente para quem está fazendo quase tudo sozinho.” Bengel é mais cautelosa: “Apesar do que algumas editoras dizem, o mercado de quadrinhos não está realmente crescendo — pelo menos não de forma consistente. Muitos nomes são os mesmos de sempre, e o público tem limitações econômicas e de acesso.” Cora finaliza dizendo que talvez estejamos em um momento de virada, mas que só o tempo e o esforço coletivo dirão até onde essa abertura pode ir.
Para fechar, nada melhor do que algumas curiosidades de bastidores de Herald’s Song. Cora, Het e Bengel compartilharam detalhes sobre como a história e o universo ganharam forma. Uma curiosidade que envolve os storyboards criados pela Cora se tornou famosa pela maneira como desenha personagens de costas, sempre com uma "bunda saliente" que vai ganhando um destaque ainda maior conforme os quadros avançam. Het brinca que isso se tornou uma distração durante o processo.
Além disso, o ritmo de produção de Herald’s Song impressiona: embora a concepção tenha começado em dezembro do ano anterior, a produção real da história só foi iniciada no final de janeiro e, em menos de dois meses, o grosso do que os leitores já viram estava pronto. "Conseguimos engrenar rapidamente e chegamos a um ritmo impressionante", comentam.
Essa agilidade foi possível também porque havia um claro entendimento das limitações de cada um e uma boa divisão de tarefas dentro do time, algo que facilitou o processo de colaboração e troca de ideias. Falando sobre liberdade criativa, Bengel revela que uma das partes mais legais do processo foi a possibilidade de explorar as cores de maneira muito pessoal.
"No final do capítulo 3, por exemplo, eu tinha a liberdade de brincar com o fundo e fiz algo bem diferente, misturando rosa e verde em um cenário noturno, algo que normalmente não seria permitido em outros projetos."
E como o nome de Herald’s Song também carrega significados profundos, Cora nos revela uma curiosidade sobre o nome do personagem Marcel. "O sobrenome dele, Galeano, é uma homenagem ao escritor e pensador latino-americano Eduardo Galeano, que escreveu As Veias Abertas da América Latina." Uma referência a uma obra que mistura poesia e filosofia, algo que ressoa com as discussões políticas e sociais que o quadrinho deseja trazer à tona. Isso, claro, sem esquecer do nosso filho de papai Callahan, que faz alusão ao universo das famílias tradicionais italianas, o que adiciona uma camada extra à natureza escrachada de privilégios do nosso furry metódico e certinho.
Herald’s Song é mais do que uma história sobre portais interdimensionais. É um projeto que nasceu da vontade de discutir temas importantes, explorar a fundo a dinâmica entre seus personagens e oferecer uma leitura rica, divertida e com muito coração. Convido todos os leitores da revista, em especial os fãs da “Especula Pop”, a acessarem a página de Herald’s Song na plataforma do Webtoon e aproveitarem a leitura dos três primeiros capítulos. Não deixem de comentar, curtir e compartilhar a obra para ajudar a levar Herald’s Song a novos patamares!
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