A discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos ganhou fôlego no último mês, com novos ataques institucionais direcionados às mulheres e crianças, e a ficção também tem se encarregado de trazer representações dessas violências que, embora pareçam distópicas, se mostram no aqui e agora, endossadas pela ideologia dominante na nossa sociedade.
Os livros de “O conto da aia” e o filme “Imaculada” giram em torno de um cenário religioso e opressor, e a partir deles podemos trazer algumas questões estruturais e históricas sobre os direitos das mulheres.
Religião e gravidez indesejada
Em “Imaculada”, o novo filme de terror psicológico do diretor Michael Mohan, é usado um cenário conhecido dos filmes de terror, onde a trama é inteiramente vivida em um convento na Itália rural, muito afastado da cidade e com segredos sombrios, um formato típico de filmes de nunsploitation, que usam a culpa cristã e a opressão religiosa como fontes do horror. São retratadas torturas ritualísticas e sacrifícios religiosos, com cenas de violência sangrenta em torno de iconografia religiosa.
No filme, a protagonista é uma jovem estadunidense chamada Cecilia, que se muda para a Itália para viver como freira em um convento. Interpretada por Sydney Sweeney, Cecilia é apresentada com inocência, obediência e dedicação à vida casta, uma grande devota que acredita que Deus tem planos maiores para ela.
O ambiente começa a ficar estranho para a personagem quando ela tem um pesadelo com pessoas encapuzadas entrando no seu quarto, e descobre logo depois que está grávida, mesmo sendo virgem e vivendo em celibato.
A gravidez é tratada como um milagre no convento e Cecilia passa a ser tratada como Maria, a mãe de Deus, que geraria o novo messias. Toda a situação é muito desconfortável para Cecilia, que tem outros olhos para aquela situação que até então parecia sobrenatural e sobre a qual ela não teve escolha. Todas as suas consultas médicas são no convento e, mesmo tendo sintomas da gravidez que eram inesperados e pedindo para ir para o hospital na cidade, tem esse direito negado.
Após uma tentativa de fuga da protagonista, o filme apresenta o elemento de maior reviravolta na trama, quando o padre responsável pelo convento revela um plano mitomaníaco envolvendo biotecnologia a serviço da religião, com experimentos para recriar a genética da imortalidade a partir do suposto prego usado na crucificação de Cristo para pregar suas mãos e pés.
Nesse momento, entendemos que o pesadelo da protagonista realmente aconteceu, e o que parecia sobrenatural é um plano religioso cientificamente elaborado. Até aqui, a personagem já passou por uma série de violências que violam sua autonomia, desde a inseminação artificial não consentida enquanto estava inconsciente até a negação à escolha e à própria saúde durante a gestação.
Ela é usada como um invólucro, carregando algo de importância, mas sem que ela, por si, tenha importância, tampouco direito sobre seu corpo. No filme, os acontecimentos não têm origem no sobrenatural; o terror está no mundano, na retirada da autonomia das mulheres, na violência e na impotência de ter seu corpo submetido às vontades de autoridades religiosas. O mesmo paralelo, sobre o direito ao corpo, pode ser feito em relação às aias em Gilead.
O terror e a distopia aqui e agora
“Imaculada” não é inovador, mas o filme foi lançado em um momento importante para a discussão sobre direitos reprodutivos, chegando aos cinemas no Brasil enquanto nós assistimos a escalada de uma história de terror fora da ficção no Congresso Nacional, com uma nova investida de parlamentares fundamentalistas para dificultar o acesso ao aborto legal no Brasil.
O Projeto de Lei 1904/2024, que está em tramitação e que ameaça a autonomia dos corpos de mulheres e crianças e criminaliza vítimas de abuso sexual, pretendia passar silenciosamente em regime de urgência, o que gerou muitas discussões sobre a influência institucional da religião e a ameaça aos direitos das mulheres.
Conhecido como o “PL da Gravidez Infantil”, é encabeçado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder evangélico da Assembleia de Deus, e pretende alterar o Código Penal para condenar por homicídio quem realizar um aborto após 22 semanas de gestação por abuso sexual, condenando a até 20 anos de prisão, mais do que a pena para o estuprador.
Não é apenas coincidência que a temática de um Estado teocrático que controla os corpos das mulheres está no terror e na distopia, na literatura e no audiovisual.
Quando há uma nova intervenção do Estado para barrar os avanços das pautas feministas, influenciada por uma forte ideologia fundamentalista cristã, vemos uma movimentação nas redes sociais e intervenções artísticas dizendo que estamos nos tornando Gilead, mas Gilead sempre foi inspirada no mundo real. E quem nos diz isso é a própria autora dos livros “O conto da aia” (1985) e a continuação “Os testamentos” (2019), Margaret Atwood.
A autora responsável pelos livros de "O conto da aia” diz que um dos principais axiomas do romance é “não se permitir [nele] nenhum acontecimento que não tivesse precedente na história humana” (Atwood, 2019, p. 446). Apesar de habitar o mundo da ficção, as obras são inspiradas em acontecimentos e possibilidades reais, e a história dos direitos reprodutivos sempre habitou um campo de horror para as mulheres.
Em Gilead, cenário de ambos os livros e da adaptação para série, um grupo de fundamentalistas religiosos assume o poder dos EUA, iniciando um regime teocrático que condena a posição social das mulheres a partir da sua capacidade reprodutiva.
A possibilidade da instalação de um regime teocrático de extrema-direita que retira os nossos direitos é uma angústia constante na sociedade capitalista, e que faz esses trabalhos de ficção se aproximarem assustadoramente da realidade.
A religião, no universo de “O conto da aia”, é central para a ideologia que controla o poder, e é um aspecto importante para pensarmos na posição que a religião ocupa no Estado e como a ideologia religiosa influencia no pensamento e comportamento na nossa sociedade.
Patriarcado, religião e ideologia
A visão moral sobre o aborto, apartada de uma questão de saúde, é historicamente atribuída ao cristianismo, associando o aborto – tanto induzido quanto espontâneo – ao pecado do adultério, representando uma desonra a Deus e uma ameaça à ideologia dominante. A religião cumpre o papel de reforçar estruturas da sociedade de classes e perpetuar a ideologia dominante.
A socióloga Maria José Rosado, professora da PUC-SP e presidente da organização “Católicas Pelo Direito de Decidir” no Brasil, que atua no país desde 1993 para questionar as leis eclesiásticas que chancelam sobre os direitos reprodutivos das mulheres, afirma que:
a punição do aborto, durante os seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida, em primeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava (...) Pode-se, pois, concluir que para o cristianismo, como para a lei romana, a afirmação do casamento monogâmico como única união legítima, era mais importante como fundamento social do que a proteção da vida (2021).
A religião torna-se um pilar para a sustentação da família monogâmica, que não é constituída por amor: é a propriedade patriarcal de tudo o que é doméstico (Lessa, 2012, p. 22), necessária para o funcionamento da sociedade de classes.
Recuperando as origens da família monogâmica, podemos identificar como ela determina um domínio masculino e tem como finalidade expressa da mulher a de procriar “filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade indiscutível, porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão um dia, nas posses dos bens de seu pai” (Engels, 1984, p. 86).
No patriarcado, a mulher tem seu lugar na sociedade julgado pela sua capacidade reprodutiva, tendo a obrigação de fazer a reposição geracional que vai fornecer novos trabalhadores, e cumpre o papel de manutenção e herança da propriedade (Vogel, 1983), o que vai justificar a opressão sistemática da classe dominante para manter essa divisão sexual do trabalho que beneficia o domínio do homem sobre a mulher.
Para exemplificar a influência do patriarcado e da família monogâmica na religião e no olhar sobre o aborto, podemos identificar uma passagem na Bíblia do Velho Testamento na qual o aborto é ligado ao pecado do adultério, e não por um viés “pró-vida”. Em Números, 5:13–22, há a narrativa de um ritual que pode ser interpretado como uma prática abortiva, praticada por um sacerdote em casos de punição para gestações que ocorreram fora da união monogâmica:
9 E o sacerdote a fará jurar, e dirá àquela mulher: Se ninguém contigo se deitou, e se não te apartaste de teu marido pela imundícia, destas águas amargas, amaldiçoantes, serás livre. (...)
20 Mas, se te apartaste de teu marido, e te contaminaste, e algum homem, fora de teu marido, se deitou contigo,
21 Então o sacerdote fará jurar à mulher com o juramento da maldição; e o sacerdote dirá à mulher: O Senhor te ponha por maldição e por praga no meio do teu povo, fazendo-te o Senhor consumir a tua coxa e inchar o teu ventre.
22 E esta água amaldiçoante entre nas tuas entranhas, para te fazer inchar o ventre, e te fazer consumir a coxa. Então a mulher dirá: Amém, Amém.
E quando a questão do aborto se tornou sobre vida?
A defesa “pró-vida” foi uma ideologia maturada com o tempo no cristianismo até chegar nesse momento em que vivemos uma grande articulação de movimentos religiosos anti-aborto. O maior argumento que vemos hoje é o de defesa ao direito à vida do feto, mesmo que viole a vida de quem está gestando.
Ainda que o Estado se confesse laico no Brasil, há muito tempo a sociologia discute sobre o papel de controle, poder e dominação que a religião desempenha dentro das instituições políticas e na práxis humana a partir da ideologia.
No pensamento gramsciano, a ideologia esconde sua face de ideologia quando se torna hegemônica, pois torna-se o padrão de comportamento e pensamento legitimado pela sociedade (Souza, 2017). Com essa naturalização, é possível que fundamentos religiosos se sobreponham a questões de políticas públicas, acesso à saúde e direitos reprodutivos.
E a ideologia religiosa tem sido uma arma eficaz para manter a classe dominante no poder e acender os ânimos de grupos conservadores que defendem uma subordinação do Estado aos valores cristãos, contribuindo para a continuidade das violências de gênero.
Em Gilead e no universo de Imaculada, há diversas formas de dominação sobre os corpos que têm capacidade de gestar e a violência de gênero é explícita porque não precisa ser ocultada.
Em Gilead, há uma quebra com a Constituição e uma ditadura aberta, enquanto no convento de Imaculada as regras são ditadas apenas pela religião. Em ambas as obras, as autoridades religiosas ocupam altos postos na hierarquia do poder (em Gilead, no Estado; em Imaculada, no ambiente controlado e isolado da sociedade) e têm poder para interferir na vida e nos direitos das mulheres.
A ficção tem o poder de trazer representações de violências cometidas contra grupos específicos, o que pode contribuir para conscientizar aqueles que não são ameaçados por elas. E, para nós que estamos sempre aterrorizadas pela possibilidade de sofrer violências de gênero, essas obras ajudam a pensar na dimensão da opressão contra as mulheres na nossa sociedade.
Apesar do cenário desfavorável e pessimista, existem acenos para uma mudança na realidade que garanta os nossos direitos reprodutivos. Mais de 70 países já legalizaram o aborto pelo mundo, e recentemente tivemos progressos na América Latina, com a legalização no Uruguai, na Argentina e na Colômbia, além de ser legalizado desde 1968 em Cuba.
Se você leu até aqui, considere deixar um comentário para expandir essa discussão. Meu nome é Gaia, sou feminista classista e esse é o meu primeiro texto para a coluna Mulheres na Ficção. Até a próxima!
Referências:
ATWOOD, Margaret. O conto da aia. Rocco, 2017.
ATWOOD, Margaret. Os testamentos. Rocco, 2019.
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Boitempo Editoral, 2019.
LESSA, Sergio. Abaixo a família monogâmica! Rio de Janeiro: Instituto Lukács, 2012.
SOUZA, Rosivaldo dos Santos. Ideologia hegemônica e contra hegemonia gramsciana: uma perspectiva filosófica. Cadernos Cajuína, 2017.
VOGEL, Lise. Marxismo e a opressão às mulheres: por uma teoria unitária. São Paulo: Expressão Popular, 2022.
Gaia, um primeiro texto e um artigo. Um desafio e, como diria Jorge Luis Borges, "a ousadia move o mundo". O texto está sensacional, parabéns!
Quando leio "[...] a ideologia esconde sua face de ideologia quando se torna hegemônica, pois torna-se o padrão de comportamento e pensamento legitimado pela sociedade (Souza, 2017). Com essa naturalização, é possível que fundamentos religiosos se sobreponham a questões de políticas públicas [...]" sinto terror por defender um estado que se quer laico, mas cuja semente foi regada pelos aspectos mais insidiosos do longo legado religioso da sociedade europeia e, agora, brasileira.
Nesses contexto e como papel desta coluna, reitero que obviamente as mulheres foram mais impactadas pela sua fundamentação patriarcal. Gostaria, além disso, de…
Muito bom! Atualíssimo e necessário
"até maria teve o direito de escolher" me marca mto como o mote que as católicas pelo direito de decidir usam. excelente texto que relaciona as ficções em meio as construções e contradições sociais, evidenciando o uso discursivo da classe dominante para reprimir e organizar a sexualidade. deu vontade de assistir a imaculada sim!
Amei o texto. Sou fã de "O conto da aia" e quero muito assistir "Imaculada". O texto me ajudou a entender a sensação que tenho quando leio/vejo "O conto da aia", de que na verdade já tamo vivendo a distopia. Gostei demais!
Excelente texto! Mais do que necessário.