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Foto do escritorBruna

CRU


A dor é lancinante, tomando conta do que antes era meu corpo e se instalando em minhas entranhas como o corte da lança de um marujo talhando as escamas de um peixe. É demorado e laborioso. Me pergunto se irei perdurar à medida que meu peito se preenche com o pesar de respirar nesta superfície.

Minhas garras cravam-se na areia quando chego à beira do oceano e luto para arrastar minha própria carcaça. Um odor além de minha compreensão impregnando minhas narinas. Quanto mais longe do oceano me encontro, mais a dor latente me consome. Quando percebo fragmentos de minha carne escamada e ensanguentada sendo deixados para trás, um sentimento horripilante faz meu coração bater mais forte.

A carne que antes constituía a barbatana que usava para me locomover oceano adentro decompõe-se, escorre em retalhos, e o odor antes desconhecido agora têm origem. Sou eu, me desintegrando em pedaços deteriorados, me despindo de meu ser, e me tornando outra coisa. Um sentimento inquietante apresenta-se em meu estômago. Um bolo se formando em minha garganta, me obrigando a regurgitar refeições passadas. Repugnância me obrigando a tentar fugir, mas para onde?

Ao meu redor rochas e areia, silêncio aterrador, solidão agonizante. Meus iguais não existem mais e a lua brilha minguante. À medida que tomo consciência de meu novo ser, minha cabeça parece pesada e uma aflição perturbadora se apossa de meu peito, como se alguém pegasse meu coração e o esmagasse sem remorso. Se outrora soubesse a sensação dolorida que nascer neste mundo me traria, talvez ponderasse a respeito de minha falha decisão.

A noite engole tudo por aqui e a incerteza é desconcertante. Não sei como me portar com este receptáculo; a cor é estranha e a areia gruda em minha nova carne. A ventania causa sensações nunca sentidas antes. Com dificuldade, fico em posição vertical pela primeira vez em terra firme, me movendo em direção a uma luz forte que brilha ao longe em branco e amarelo. As criaturas a quais me assemelho agora estão se movendo rapidamente e, diferente de mim, têm tecidos em volta de suas carnes. Todos ocupados demais para perceber minha presença.

Fico o que parece uma eternidade ali, estática, os observando. Parecem despreocupados, mostrando os dentes, tocando uns nos outros e trocando palavras enquanto se movem sorrateiramente. São cativantes de se observar e as interações são embebidas de densidade, algo que paira no ar mas não consigo dizer o quê.

— O que é isso?! — Escuto um som agudo vindo de perto.

Uma criatura se apressa em vir até minha direção, se aproximando e rapidamente enrolando tecidos ao meu redor. Agora somos iguais, de alguma forma.

— O que aconteceu? Está machucada? — Ela me toca e examina, quase que de forma impaciente.

— Preciso encontrar amor.

A criatura olha em meus olhos profundamente, e por algum motivo tenho o pressentimento de que aquilo é uma expressão facial. Ela demonstra emoções, e neste caso, a emoção é surpresa.

— Meu nome é Ellen. — Ela diz de forma atenciosa. — São 20 de fevereiro. Você está em Alagoas. Consegue me entender? Qual seu nome?

De repente, uma dor muito forte atravessa meu crânio e me sinto desequilibrada. Como uma onda descontrolada em dia de tempestade, informações atingem minha cabeça em uma rapidez absurda.

Eles têm pernas. Usam roupas. Tem pudor. Carregam emoções intensas. São hipócritas. Tem dedos. Se identificam com nomes. Os que têm forma masculina podem ser traiçoeiros.

— Oi? Tudo bem? — Ellen pergunta.

— Desculpe, não me sinto muito bem. — A resposta escapa de forma automática pela minha boca.

— Realmente, mulher. — Ela está chocada. — Usou droga, foi?

— Não? — Digo com hesitação.

— Esse Carnaval… — Ellen comenta, balançando a cabeça em negativa. — Você vai me dizer seu nome ou a vergonha não deixa?

As palavras se formam em minha cabeça imediatamente, a mágica que me foi prometida rapidamente tomando forma em minha mente.

— Janaína. — Estendo minha mão e ela aperta.

— Você sabe onde estão suas roupas? Quer uma emprestada? Tive que te dar essa manta porque você estava parecendo uma doida, andando pelada por aí.

Eles tem fixação por patologias. Usam metáforas demais. Se expressam de forma exagerada.

— Fique aqui escondida. Vou buscar roupas.

Ela me carrega até um local onde existe uma luz incandescente, que não é o sol, mas parece imitar de forma artificial. Estou no que parece um abrigo, uma cabana, um espaço estranho. Forço minha cabeça para encontrar um vestígio de informação; a palavra correta é quiosque. Estou em pé atrás do que seria um balcão, algumas pessoas andando e se divertindo ao longo da praia.

Não tenho noção de quanto tempo passa, o decurso de minha existência aqui é diferente de tudo que encontra-se nos mares. A incerteza de meu futuro é um fardo a se carregar, mesmo que não tenha completado um dia sequer nesta terra.

Ellen retorna com roupas em suas mãos, e por algum motivo reconheço o que é um vestido. Sinto como se a cada minuto que passo em terra firme, sou mais como eles e menos como eu mesma. Quando minhas mãos se antecipam para tomar as peças das mãos de Ellen, já estou sentindo a moralidade que tanto cerca os seres humanos tomar conta de mim. Me sinto preocupada por não estar propriamente vestida.

— Aqui atrás tem um banheiro. — Ellen aponta.

Caminho até lá como se soubesse exatamente o que fazer, e estranhamente, eu sei. Ela me deu peças íntimas que parecem novas e o vestido é azul esverdeado, como o oceano em dias ensolarados. O tecido fino que acaricia minha pele se assemelha ao afago de algas marinhas quando se atravessa os mares com serenidade. Minha pele… Quando encaro o objeto quadrado pendurado a minha frente, o reluzente cinza de antes se foi, dando lugar a uma camada pálida e opaca de pele com textura suave que seria facilmente machucada por corais rochosos. A criatura que me encara de volta naquele objeto é aterrorizante, suas orbes acastanhadas sem expressão alguma e, mesmo que tivesse toda a magia dos mundos, jamais conseguiria dizer suas intenções.

Um som desconhecido me faz sobressaltar.

— Está passando mal? — A voz de Ellen ecoa do outro lado da entrada que nos separa.

Ergo minha mão e encosto na superfície estranha e dura, em busca de uma abertura, qualquer coisa que me liberte do cubículo em que me encontro e me leve para longe da criatura que me tornei.

— Como saio? — Pergunto.

— A porta é meio ruim, vou empurrar. Se afaste!

Eu obedeço ela, e com um solavanco, o portal é aberto.

— Serviu! — Ellen mostra os dentes. É um sorriso. — Está com fome? Pode comer alguma coisa, é por minha conta!

Ela me puxa pelo braço, e os tons de nossas peles são destoantes, mas seu toque é como um acalento, me envolvendo enquanto me leva até um local para descansar as pernas. Fica em frente ao balcão, e a superfície não é muito aconchegante. O sentimento de finalmente me encaixar e fazer parte de algo é inebriante, como quando fazia uma caçada bem sucedida e me alimentava ao ponto de chegar a algo além da saciedade. É aconchegante e caloroso. A conexão humana me infecta como uma doença e enche meu peito de um sentimento amistoso. Por algum momento, consigo entender o motivo destes seres sentirem emoções tão fortes e intensas.

— Janaína, que tipo de droga você usou? Parece que está em outro planeta. — Ellen diz enquanto prepara algum alimento.

— Eu sou de outro mundo. — Respondo com sinceridade.

— Eu percebi. — Ela gargalha, colocando uma fruta em minha frente. — Toma essa água de coco que vai melhorar rapidinho!

As informações que me foram dadas não dizem nada a respeito daquilo. Então ela coloca dois objetos em cima do balcão, derramando um líquido amarelado em um e jogando a fruta em cima do outro. Ela caminha e se acomoda para descansar as pernas ao meu lado, me encarando enquanto leva o objeto com líquido amarelo até a boca.

— Sabe usar um copo, não é? — Ela ri e logo após repete a ação anterior.

Eu coloco os dedos em volta do tal objeto, o copo, e faço exatamente o que ela faz, levando aos lábios. O líquido transparente tem sabor doce e me refresca, atravessando meu corpo e trazendo uma onda de saciação. Sede. A palavra ecoa em minha cabeça.

— Então, você está hospedada em algum lugar por aqui?

Eu balanço a cabeça em negativa.

— Me hospedo no oceano.

— Filha de Iemanjá, então? — Ela joga a cabeça para o lado.

— Não conheci minha progenitora.

— Nossa. Desculpa. — Ela abre os olhos exageradamente por alguns segundos. — Você tem mais alguém que possa ligar?

— Estou longe do meu povo. — Confesso com pesar. — Mas irei voltar após minha missão.

— Tudo bem. — Ela concorda com a cabeça, ficando sob seus pés. — Vamos esperar o efeito passar. Pode ficar aqui por enquanto.

— Preciso encontrar o amor. — Digo a ela com convicção. — Sabe como? Onde devo ir?

— No Carnaval? — Ellen ri, como se essa fosse a única função que têm. — Em qualquer esquina.

Concordo com a cabeça como ela fez anteriormente, bebendo de meu copo novamente. Eu sei o que é uma esquina. Fico sob meus pés novamente, olhando em volta, em busca da esquina mais próxima.

— O que foi? — Ellen pergunta.

— Estou indo encontrar o amor.

— Janaína, senta aqui, por favor. — Ela me puxa para descansar as pernas novamente. — Do que você tá falando?

— A feiticeira prometeu que eu seria rainha quando encontrasse o amor em terra firme.

Ellen suspira, balançando a cabeça em negativa, mas não é impaciência como meu repertório limitado de emoções humanas sugere. É outra coisa.

— O amor não vai te transformar em rainha. — Ela afirma com tristeza. — O amor vai te fazer duvidar de si mesma, te fazer desejar morrer e depois transformar tudo em uma grande lição.

— Não! — Me levanto abruptamente. — Eu preciso do amor. Eu serei a rainha. — Eu sei que precisa, todos nós precisamos. Mas você não vai encontrar ele em uma única noite. Especialmente no Carnaval.

Ellen me olha com… pena?

— Mas então, o que devo fazer? Não posso voltar! Sem isso não serei ninguém!

— Claro que vai ser! Não precisa do amor de um homem qualquer para ser alguém.

Eu respiro de forma exasperada, frustração tomando conta de mim. As emoções humanas alternam rapidamente e têm efeito direto sob meu corpo físico, o que torna tudo mais assustador.

— Não preciso que seja um homem! Qualquer um é suficiente. — Eu digo a ela. — Preciso que alguém me ame até o nascer do sol ou vou morrer.

A expressão no rosto dela muda drasticamente. É medo. Ou choque. Eu não sei. Eles têm muitas expressões.

— Por favor, não diga isso. — Ela agarra meus pulsos. — Você não vai morrer. Essa necessidade de ser amada por outros passa com o tempo. — Você não está entendendo, Ellen.

Minha respiração está pesada e meu coração está batendo forte demais. Estou com raiva.

— Eu preciso ser amada, então a profecia estará completa e eu poderei governar os mares.

Ela troca de expressão novamente. É agonizante assistir e não poder fazer nada a respeito.

— Do quê você tá falando? Você faz parte de alguma seita religiosa, ritual…? — Não tem relação alguma com religião! Eu já disse. Atravessei o oceano, recebi este corpo, e preciso que alguém me ame até o nascer do sol, ou irei me tornar espuma.

— Isso não tem a mínima graça. — Ela me encarou. — Estou trabalhando desde às oito da manhã. A realidade é dura. A última coisa que preciso é escutar um conto de fadas.

— Eu tenho poder! Posso provar.

— Tudo bem, eu vou chamar os bombeiros. Talvez você não seja turista.

Ela começa a se afastar, me olhando com mais uma expressão indecifrável.

— Vem comigo! — Eu suplico. — Posso te mostrar!

— Você está totalmente desequilibrada. — Ela balança a cabeça em negativa. — Ela me disse! — Deixo escapar em meio aos sentimentos humanos que me corroem. — Que vocês são fracos e incrédulos! Não creem em nada. E são covardes!

— Você é louca.

Eu viro as costas e começo a caminhar em direção ao oceano, a ardência da raiva fazendo meus pés pisarem com força na areia.

— Janaína! Por favor, não se mata! — Escuto Ellen gritar ao fundo.

Continuo caminhando, e quando chego à beira do mar, consigo sentir o poder correndo através de minhas veias. Me viro e encontro Ellen correndo em minha direção.

— Vamos conversar! Desculpa te chamar de louca. — Ela diz, ofegante.

Quando ergo minhas mãos, sinto a água me envolvendo, se entrelaçando aos meus dedos, molhando meu vestido. O contato com a água salina é o suficiente para fazer minha forma verdadeira se mostrar, escamas acinzentadas e cintilantes aparecendo ao longo de meus braços, a dor cortante tomando conta de mim quando nadadeiras crescem entre meus dedos, garras crescendo a partir das unhas.

Ellen cai de joelhos, horror estampado em sua face, e eu corro para longe do oceano, a transformação sendo interrompida. Me arrasto até a garota, tossindo quando as guelras começam a se abrirem nas laterais de meu tórax. Ao invés de fugir, Ellen me agarra e me levanta, me puxando para perto de si enquanto arfa em desespero.

— Meu Deus! — Ela diz enquanto me puxa para longe do oceano. — Você corre perigo.

— Eu preciso… — O som que sai de minha garganta é disforme. — Preciso ser a rainha. Não irei morrer sem ser lembrada.

— Vem, cala a boca.

— Você. É um peixe. — Ela diz, e eu concordo com a cabeça.

— De certa forma.

— E precisa encontrar o amor?

— Ou irei morrer. Desaparecer, para ser mais precisa.

— Como… Por quê?

— Sou a princesa do oceano Pacífico. Uma feiticeira me invocou, e prometeu que eu seria a rainha de todos os oceanos se viesse à terra e encontrasse o amor. Mas caso não encontre até o nascer do sol, irei me tornar espuma e desaparecer. E ela receberá minha alma como pagamento.

— Mas… Isso é impossível. Ninguém pode amar alguém em um dia.

— É minha única saída.

— Por que ser rainha é tão importante?

— Quero governar os oceanos.

— Acho que você foi enganada.

— Mas… Como?

— O amor humano não vai te transformar em rainha. Você veio até aqui pela simples promessa de se tornar poderosa. Isso é amor.

— Mas… Eu não entendo. Preciso de alguém. De outro ser!

Ellen toma minhas mãos nas suas, olhando em meus olhos com ternura.

— Não, Janaína. — Ela balança a cabeça em negativa. — Você já encontrou o amor. Se importa com você mesma o suficiente para viajar o mundo e vir até aqui. Se arriscou por si mesma. O amor está em você.

Quando as palavras atingem meus ouvidos, tudo faz sentido. Eu lutei para chegar até aqui, assisti meu corpo se desmanchar e se reinventar, suportei emoções aterradoras, me esforcei para me adaptar. Já encontrei o amor. Ele me encarou no reflexo no banheiro. Ele me deu forças para suportar a dor de me perder.

— Preciso voltar. — Digo com convicção. — A feiticeira não irá me tornar rainha. Eu irei.



Conteúdo presente na edição de OUTUBRODE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.

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