Durante 25 anos, a vista da minha janela foi uma castanheira.
Posso dizer com convicção que ela fez parte da minha vida, como um Ent querido. Ao contrário da tendência geral de um país como o Brasil, a castanheira acompanhava as estações religiosamente: em meados de março, suas folhas amarelavam e caíam. E, de alguma forma, aquele barulho de planta seca, sendo esmagado sob os meus pés quando eu chegava da escola ou saía para trabalhar, me ancorava no mundo. Era a prova de que o tempo passava de fato - não só na minha cabeça.
Quando eu era criança, já totalmente envolvida pelo Fantástico, brincava de magia com as minhas irmãs. A castanheira era o Salgueiro Lutador, o Barbárvore, o local de onde Thalia Grace nos protegia. Ela era uma das muitas sob o comando de Aslan e sabia latim o suficiente para entender os jargões jurídicos de que minha mãe falava, afinal eu já havia aprendido que arbore loque latin. Toda vez que eu pegava um graveto no chão, dizia um feitiço qualquer e o vento sacudia as folhas da castanheira, eu tinha certeza de que magia não era só uma coisa da minha cabeça.
Depois de muitos anos, quando ingressei na vida acadêmica e decidi me dedicar ao deslumbramento que a Fantasia causava, os galhos da castanheira continuaram a me acompanhar. Eu precisava escrever sobre como os Formalistas Russos revolucionaram o modus operandi da crítica literária, mas só conseguia pensar em como as árvores narnianas haviam ajudado a derrotar o exército Telmarino. Repetia a cena na minha cabeça e sentia uma profunda convicção de que minha castanheira despertaria do seu estupor em minha defesa, caso fosse necessário.
Eventualmente, eu deixei tudo de lado para estudar a mágica que eu via na natureza e descobri que não estava totalmente sozinha. Havia inúmeras pesquisas que conectavam as narrativas mitológicas, das quais a Fantasia Moderna derivou, à maneira como comunidades ancestrais interpretavam o meio-ambiente. As folhas morriam no outono porque Perséfone retornava ao Submundo; e floresciam de novo na primavera porque a Deusa deixava seu marido, Hades, para ficar com Deméter, sua mãe.
Mesmo assim, essa explicação não me parecia suficiente, pois os livros de história diziam que o advento da ciência chegaria em algum momento pós-Revolução Industrial. Aqueles povos “arcaicos”, que contavam histórias sobre um mundo vivo, aprenderiam a construir máquinas e fabricar remédios e então, os mitos seriam substituídos pela modernidade. Era assim que o mundo evoluiria: trocando as potências da natureza pelas possibilidades da tecnologia.
Eu recuso esse raciocínio. Na verdade, muitos outros pesquisadores também denunciam os problemas dessa ideia. Kathrine Hume, por exemplo, defende que o pensamento mitológico e o pensamento científico-realista não são mutuamente exclusivos. Muito pelo contrário, a autora acredita que a cultura é feita desses dois impulsos complementares. Já pesquisadores, como Don D. Elgin, afirmam que a forma “moderna” de se pensar a natureza tem causado uma ruptura cultural entre o ser humano e o meio-ambiente. Ele acredita que, ao se colocar em oposição ao restante do mundo, a sociedade moderna fez com que as árvores, rios e animais se tornassem uma fonte de matéria-prima para o capitalismo.
É fato que a crise climática vai além da mera produção de poluentes, uma vez que é a cultura e o sistema sócio-econômico posto em vigor atualmente que nos impede de tomar as medidas necessárias para mitigar esse problema. Mas o que a Fantasia tem a ver com isso? E mais importante ainda, onde entra a minha castanheira nessa história?
Como Don D. Elgin enfatiza em sua obra, o gênero Fantástico tende fortemente a renegar muitos dos preceitos modernos e recuperar nossa herança mitológica, o que em última análise, nos aproxima da natureza. Nos grandes sucessos da Fantasia Moderna, a defesa pelo bem estar e harmonia do mundo parece ser um dos temas mais centrais.
Em O Senhor dos Anéis, os Ents retomam as forças das florestas e dos rios em uma batalha contra Saruman e nos mostram como a destruição ambiental é associada ao mal na Fantasia. Em Como Treinar o seu Dragão, Princesa Mononoke, Cavaleiro Verde, As Crônicas de Nárnia e em inúmeras outras obras, a Fantasia aproxima o leitor/espectador daquele passado mitológico e pagão no qual a Natureza não só é sagrada, como é parte inseparável da identidade humana.
Nas palavras do estudioso Chris Brawley, “A única forma de recuperar nosso senso de sagrado em relação à natureza é revisando nossas atitudes para com o humano e não-humano. Junto com grande parte das religiões originárias, a Fantasia tem a capacidade de fazer isso. Ela oferece ao leitor uma forma animista de enxergar o mundo natural e ao “sair da realidade”, nos leva para lugares que, sem negar à razão, nos possibilitam um senso de fascínio, um novo jeito de ver a realidade e recuperar o que foi perdido”.
Ao cortarem minha castanheira, há alguns meses atrás, - pois aparentemente ela atrapalhava o funcionamento do portão eletrônico do meu vizinho - o “progresso” destruiu um pouco mais da magia que tenta sobreviver à duras penas nesse mundo.
Hoje, aquela árvore existe somente nas histórias que leio e escrevo, e assim, mais uma vez, é a Fantasia que me ajuda a preservar o mundo.
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