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"Donzela", enlatados e Scorcese

Matheus Maciel, escritor e colunista da Revista Especular









Entre as décadas de 1980 e 1990, o pólo de cinema hollywoodiano se encantava e encantava as plateias de cinema com incursões interessantes e com uma pitada de experimentalismo nos filmes de fantasia, inclusive a chamada “fantasia medieval”. O gênero, juntamente com a ficção científica e a space opera, conseguiu seu lugar ao sol nos restritivos orçamentos e espaços em produtoras de cinema da época.


Em 1982, Arnold Schwarzenegger dava vida ao afamado guerreiro cimério em Conan, o Bárbaro. Cinco anos depois, em 1987, estreava nos cinemas, o divertido e arrebatador A Princesa Prometida. Com O Feitiço de Áquila (1985) e Coração de Dragão (1996), fechamos uma quadrilogia que serve de perfeito exemplo como referência do que era o cinema de fantasia em Hollywood à época. Pessoalmente, certa força invisível e misteriosa sempre rondou os filmes desde que os assisti pela primeira vez, cada um deles. Um sentimento que eu não ainda não consigo explicar precisamente onde se encaixa, mas que não seria imprudente teorizar que seja uma pincelada de nostalgia, tanto de minha parte, por ter vistos os filmes, quanto uma sensação do que me parece uma “nostalgia alienada”, que entremeia as paisagens de lugares que remetem a uma Europa medieval essencialmente rural. 


Sim, acho que compreendi melhor o sentimento. Recentemente, fui revisitado por ele.

Logo no plano que apresenta o título do filme em Donzela (2024), eu regressei de imediato a Florin, de A Princesa Prometida, com soco nostálgico digno de Anton Ego sofrendo de seu devaneio gastronômico. Porém, antes que eu acabe dando a entender que fui agraciado positivamente por Donzela e sua produção mágica, vou abrir o jogo: as minhas duas impressões gerais após o término do filme, foram de absoluto tédio e resignada preocupação.


Vamos do começo.


Donzela é um filme dirigido pelo espanhol Juan Carlos Fresnadillo e que figura no catálogo de originais da Netflix. Para os apreciadores de um cineminha em casa, essa última parte pode chegar a dar calafrios, se fizermos um passeio pelos lançamentos de originais do streaming. O ponto não é sobre a qualidade dos filmes ou a adequação a padrões invisíveis e claustrofóbicos do que a maioria da opinião pública considera aceitável em um filme, mas a intenção que assombra essas produções. Para ser mais direto, me aproprio do jargão clássico: enlatados.


O termo enlatado, para que fique definido entre nós, se refere a obras com paralelos à comida enlatada (logo, submetida a agressivos processos industriais), popularizada com o american way of life, que pregava, por vias do liberalismo econômico nos Estados Unidos, o acesso mais fácil e barato a uma gama ampla de gêneros alimentícios por intermédio das latas e supermercados, tudo colorido pela propaganda típica da época. É claro, este exemplo e sua explicação serviram para conectar a indústria que despeja, no mercado, produtos a níveis neuróticos e a indústria dos filmes mais famosa que se tem notícia. Estou falando de Hollywood mesmo, tudo bem? Não me refiro apenas a empresas consagradas e dominantes no ramo, como a Paramount e a Disney, mas à novidade do mercado, a Netflix. A greve de roteiristas que houve lá fora ano passado se deu, principalmente, por conta do pagamento dos residuais à categoria. Em outros termos, a greve marca a mudança de olhares da indústria, reconhecendo a Netflix, de vez, como um dos pilares do cinema estadunidense. Caramba, que volta longa para falar logo de fantasia. Permita-me voltar ao tema da coluna.


O que quis apontar agora não vai precisar de reais rodeios: a Netflix é, inegavelmente parte da indústria de cinema, que é parte da cultura industrial geral dos Estados Unidos. Donzela, portanto, é a lata mais genérica e barata possível que pode ter sido produzida nesse contexto. Repito, não me refiro à qualidade técnica nem ao sentimento e identificação (ou mesmo diversão) que o filme possa desdobrar individualmente, mas sim, ao que ele representa e o que carrega consigo.


Os quatro filmes que citei agora a pouco, foram parte de processos de experimentalismo de Hollywood quanto ao gênero de fantasia medieval e seu alcance, em termos de mercado. A existência desses filmes, na verdade, é uma questão mais complexa do que puro teste de público e bilheteria, mas é realmente difícil negar que são filmes que carregam uma genética de originalidade e autoralidade de cinema, que provavelmente arrancaram alguns aplausos ou risadas até mesmo do Martin Scorsese. 

“Absolute cinema”, não é mesmo?


Talvez só nostalgia. 


Pode me chamar de louco, mas a protagonista do furacão nostálgico Stranger Things (2016 - ) também protagonizar Donzela, não pode ser simplesmente coincidência. Ou pode? Acho que cria-se um signo aqui, à moda dos signos que essa indústria adora criar. Alguns vão chamar de typecasting, mas eu prefiro acreditar que domesticar o espectador com o familiar seja o esporte predileto das produtoras. Podemos investigar se Donzela se encaixa aqui.


Para este experimento, precisamos avaliar se o filme engloba os signos clássicos dos filmes de fantasia já consolidados.


Temos, em Donzela, um tropo sobre a alteridade e empatia para com um dragão, como em Coração de Dragão? Sim, temos!


Paisagens medievais estonteantes com uma protagonista facilmente gostável, como em A Princesa Prometida? Tem, também.


Uma espada legal, como em Conan? Check.


Ah, vale lembrar que a legítima espada do Conan apareceu em Stranger Things. Até arrepiei aqui.


Não falei do Feitiço de Áquila, mas lá, o tema principal é o amor entre os protagonistas. Acontece que o tema do amor saiu de moda. As paixonites cinematográficas foram compreendidas, depois da década de 1990, como grilhões da figura feminina em relação a seu “príncipe encantado” ou “cavaleiro alla rusticana”. A protagonista, Princesa Elodie, é traída pelo príncipe por quem se apaixonou. Uma semiótica direto ao ponto. De quem depende Elodie, agora que não tem seu cavaleiro e está a mercê de um dragão? Dela mesma. Claro, do roteiro que se ocupa em preencher o miolo do filme com alguma coisa, então precisa mantê-la viva e sofrida, ao melhor estilo dos filmes de vingança.


Todos os signos que proporcionam familiaridade ao público estão aí, então. Talvez o filme não seja tão bem recebido pela crítica do público, por ser tão genérico e previsível. “Bem, é um filme para ver domingo, depois do almoço”. “É para assistir com o cérebro desligado, não precisa ser tão analítico”. Até o lançamento desta coluna, o filme está com a média de 2,5 de 5 estrelas no aplicativo letterbox. Perfeitamente equilibrado, nem tão ruim, nem tão bom. Livre de erros.


Absolute cinema.


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