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Fantasiando a iluminação

Frederico Cavalcanti











Você já conseguiu sentir uma palavra?

Pensar um sofrimento?

Dar uma imagem ao medo?

E de explicar o que é a luz, a poesia, o prazer?

 

Seria possível alcançar uma completude nestas ou em qualquer outra senda que seja proposta?

 

Vagabond
Miyamoto Musashi, no capítulo 226 do mangá Vagabond

No Capítulo 217, Volume 24, de Vagabond, mangá baseado na concepção de Eiji Yoshikauwa, acerca da biografia fabulosa de Musashi, o histórico samurai, o monge Tahuan desafia Musashi a “cortar o vazio”.

 

Uma forma zen de dizer você mata bem, mas serás iluminado? És tão bom e habilidoso com seu espírito como tem conseguido ser com sua espada? 

 

Ironicamente, os mistérios da iluminação, que no japonês consubstancia-se na palavra satori, não seriam passíveis de serem alcançados por palavras, mas por meio do insondável ato de ser, de se encontrar em si  

Vagabond
Vagabond, nº 1

Ao entendermos que as palavras Pensar e Sentir são modos didáticos de chamar àquilo que brota em nossas interações com o mundo, distintos daquilo que saem de gavetas de nosso cérebro, acharemos dois tesouros: (i) tudo existe, palavras criam e são criadas, em uma circularidade de eventos, em relação ao que somos e compreendemos, pois tudo muda - menos a mudança de tudo - e que (ii) somos também seres da natureza.

 

Não há oposição e sim distinção entre cultura e natureza. Só existimos porque em algum momento, o universo guardara em si as possibilidades naturais para que um animal desenvolvesse um cérebro e um organismo tal, capaz de interagir e criar do modo como o ser humano cria (Cavalcanti, 2022, 17-18).

 

Precisamos disto: uma reintegração de nós à natureza, em vez de uma continuidade dominante e exploratória de tudo - é o que se têm chamado de Ecologia dos Saberes (Santos, 2007, 71-94). Nós, aqui, defenderemos: uma Ecologia dos Seres, pois, embora saber seja um princípio importante, o que se faz com o saber, define melhor quem se é.

 

Interessante que nas entrelinhas da diversão como em Vagabond, e outras séries -Pokémon, Cavaleiros do Zodíaco, e, até, Dragon Ball - os personagens encontram um pretexto para falar sobre virtudes, sobre o que é amizade, sobre o valor de salvar o mundo, ou defender algo além do que se vê no horizonte, que parece ser maior do que o “a si mesmo”.

 

Assim, a todo momento está se constituindo, de algum modo, à própria subjetividade. Para Hans-Georg Gadamer, existiria uma Hermenêutica Geral Universal (Gadamer, 2015, 612-631): “tudo existe para ser lido, tudo é linguagem, tudo que se vê e tem sentido para nós, eis a nossa leitura, eis a compreensão constituída pelo fato de que tudo com o que nos deparamos, o mundo percebido, é um mundo que lemos e interpretamos”. 

 

Palavras.

 

Gadamer era um fenomenólogo, acreditava nos fenômenos para serem lidos. Ler corresponderia a um ato de criação e não apenas de apreensão do mundo, pois somos juntos com o mundo, indissociáveis daquilo que nossos sentidos podem alcançar. Temos lentes, pré-compreensões amalgamadas com tudo que percebemos e contatamos.


 A fantasia ou o ato de lê-la - a dimensão da fantasia, as existências e artes fantásticas do mundo - e a nós, consequentemente, são uma parte ainda mais moldadora de quem somos

 

Por envolver o lúdico, por ser também um momento de entrega ao brincar, tenderá a ser uma experiência de fazer cair nossas defesas psicológicas: se estamos brincando, para que vamos guerrear? E se não vamos guerrear, para quê precisamos de defesas ou proteções? Pois brincar tem o sentido de viver plenamente o prazer de estar aqui e agora.

 

Portanto, a concepção de vivenciar a fantasia vem em fusão, forjada em liga, com uma senda, naquilo em que se possa sentir e pensar, como algo que expressaria a iluminação.

 

O caminho da espada de Musashi, o caminho do arco, o caminho do chá, o caminho da magia, o caminho da caligrafia, e todo caminho que seja religioso ou doutrinário: o será de virtude, de sua concretização, aqui e agora, de boas atitudes e boas formas do ser, perante si e ao outro (Sunadomari, 2006, passim).

 

De modo que todos os tropos da fantasia, como tudo que é fantástico, são portais para a construção de nossa subjetividade e para a crítica pessoal e de nossas criações. O fantasiar torna-se, então, um poderoso ato tanto político quanto de autoconhecimento.

 

Referências

CAVALCANTI, Frederico D. Ramalho. Vozes ao rum cantam soltas no convés: existência, essência, ser, Deus e o vento soprando as velas... – Mogi Guaçu, SP: Becalete, 2022.

GADAMER, Hans-Georg (1900 – 2002). Verdade e Método. Vol. I. trad. Flávio Paulo Meurer. Rev. Trad. Enio Paulo Giachini. 15ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. CEBRAP nº.79. p71-94. São Paulo. nov. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n79/04.pdf.

SUNADOMARI, Kanshu. A iluminação através do Aikido. Trad. Wagner Bull. São Paulo: Pensamento, 2006.

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