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Godzilla e sua representação narrativa sobre a bomba atômica

Bianca Lais











Godzilla é um kaiju, um termo japonês que representa um “monstro estranho” e também nomeia o subgênero da ficção científica e terror que envolve a aparição desses monstros gigantescos. Sua criação como figura na cultura pop ocorreu em 1954, com o lançamento do filme Gojira (ゴジラ), no Japão. Catalogado como uma espécie de “réptil anfíbio pré-histórico” — conhecido carinhosamente como “lagartão” entre os fãs —, Godzilla é uma representação imagética do medo das armas nucleares e do terror e destruição causados pelas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, ao final da Segunda Guerra Mundial.


Sua aparência semelhante a um dinossauro com placas nas costas, além de seu poder de lançar um raio atômico pela boca, representam a natureza desconhecida, grotesca e o poder devastador, tanto de Godzilla quanto da bomba atômica. Apresentado como uma força destruidora no trabalho de Tomoyuki Tanaka, Ishiro Honda e Eiji Tsuburaya, posteriormente, com o sucesso do personagem no audiovisual japonês, o monstro adquire um aspecto de anti-heroi, protegendo a cidade de Tóquio da invasão de outros monstros e até mesmo de alienígenas, ainda que o rastro de destruição permaneça nos enredos.


O sucesso de Godzilla foi tamanho que suas produções cinematográficas são divididas em “eras”, como a série Showa, de 1954 à 1975; a série Heisei, de 1984 à 1995; e a era Millennium, de 1999 à 2004. Séries para a televisão, quadrinhos e aparições em jogos, desenhos animados e livros também fazem parte do universo cultural ao qual o kaiju criou sua marca.

Mas, para o conteúdo que desejo trazer nesta coluna, quero enfatizar as versões do Godzilla para o MonsterVerse estadunidense, contando com os filmes Godzilla (2014), Godzilla: King of the Monsters (2019) e Godzilla vs. Kong (2021), além das novas representações japonesas do kaiju como Shin Godzilla (2016) e, principalmente, Godzilla Minus One (2023).


Godzilla Minus One (2023)

Com um enredo iniciado no Japão, a versão estadunidense de 2014 nos apresenta Godzilla como um monstro que espelha o perigo da radiação e das armas nucleares, algo estabelecido em sua origem e repetido nos filmes Shin Godzilla e Minus One. No entanto, com um roteiro hollywoodiano, ele perde sua força, surgindo como um “mal necessário” que, no fim das contas, protege a humanidade de outros “invasores monstruosos”. E, quando falo em perder sua força, falo do sentimento de terror e desespero que a imagem de Godzilla deveria evocar como um símbolo de destruição e morte, de onde ele nasce.


Nas aparições seguintes no cinema americano, Godzilla é “a última esperança” da humanidade para encarar monstros mais terríveis e, até, pateticamente, a ganância humana, e não o pânico e a certeza da desgraça. Ao se unir ao King Kong, outra figura com representações bem distintas, Godzilla parece muito mais um super-herói com uma armadura mesozoica do que um monstro que segue sua “natureza” territorialista.


Aqui, ele age sob um aspecto moral e ético da perspectiva humana, chegando a dar olhadinhas de canto para os protagonistas humanos e se apresentar como uma criatura que se sacrifica pelo bem maior. Para consagrar esse roteiro, personagens humanos desinteressantes, adolescentes que invadem bases militares secretas e cientistas ridiculamente malucos fazem o espectador torcer mais pela destruição que Godzilla e outros de sua espécie podem causar do que perceber o impacto que ele representa.


Como eu já citei anteriormente, no próprio audiovisual japonês Godzilla muda de característica, de um vilão para um anti-herói. No entanto, como a imagem de um trauma real do povo japonês, até mesmo essa mudança de aspecto da criatura carrega uma simbologia totalmente diferente do que a figura vazia e superficial da versão de Hollywood. Nessa subversão controlada, Gojira (seu nome japonês), traduz a força de um povo apoiado pela dor de uma tragédia sem precedentes. 


Já as versões de Shin Godzilla e Godzilla Minus One trazem de volta a visão de desastre, pânico e tragédia que iniciaram a trajetória do kaiju lá em 1954. Com personagens humanos lidando com conflitos profundos, percebendo sua fraqueza ao enfrentar um monstro colossal como Godzilla, vemos, especialmente em Minus One, a diferença que faz construir a história de um símbolo a partir das feridas reais que o deram forma.


Godzilla é uma representação da bomba atômica, e isso é claro para qualquer espectador. Mas, enquanto para o cinema norte-americano ele simboliza a visão de “uma força natural inevitável” para a manutenção da sociedade como ela é, com uma brutalidade até simpática, em Minus One sentimos medo de uma criatura gigantesca a qual somos incapazes de lidar e a qual somos incapazes de deter.

Hollywood nos oferece, em comparação, conflitos humanos cansativos, repetitivos e a sensação de risco baixo. Já a direção de Takashi Yamazaki nos traz personagens com dramas reais, os aspectos profundos da guerra na sociedade japonesa e o desejo coletivo de proteger um povo que foi negligenciado por seu próprio governo, ainda que os recursos sejam escassos. Ao invés de emular o trauma do 11 de setembro e transformar Godzilla em mais um super-herói contra o desastre terrorista estrangeiro, Minus One dá ao kaiju sua roupagem original de horror, morte e desolação, quando o protagonista chora desesperadamente sob a chuva negra após um ataque de raio atômico. 


Quando todos os monstros se curvam ao Godzilla estadunidense, nomeando-o como o King of the Monsters, há uma propaganda de submissão das demais nações à potência trágica dos Estados Unidos em seu bombardeio nuclear. Quando Gojira é destruído por um ex-kamikaze que teve a escolha de viver e construir uma família, há alívio e uma mensagem de esperança de que a vida merece ser celebrada acima da narrativa da guerra. Ainda que Gojira deixe marcas inesquecíveis e irreparáveis; e deixe, ao final, um rastro de que ele pode voltar a qualquer momento. 


Em ambos os casos, Godzilla é uma metáfora sobre a guerra e todas as perdas, as mortes e a destruição que ela causa, sejam físicas, psicológicas e sociais. Assim como um híbrido de várias criaturas, Godzilla é um híbrido de vários sentimentos, incluindo as cicatrizes de uma nação devastada pela guerra e o orgulho daqueles que não se arrependem de fazer o que for necessário para garantir a “ordem natural”.


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2 comentarios


Minus One é meu filme favorito do Godzilla, um dos poucos em que acompanhar a trama humana era incrível e ao mesmo tempo que ansiava pela aparição do Kaiju, eu não queria que aquela trama fosse interrompida

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Gaia Jutz
Gaia Jutz
15 oct

Ótimo texto! Muito boas observações sobre as diferenças entre os filmes japoneses e estadunidenses, afinal é uma diferença de ótica entre o bombardeador e o bombardeado. Arrasou <3

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