Se você procurar no dicionário a palavra "medo", vai ter certeza de que ela se trata, na verdade, de um substantivo masculino e que, sim, na classificação da palavra com relação ao gênero, a minha afirmação é incorreta. Todavia, ao recordar as experiências que me geraram medo, muitas delas são resultados de algo sobre um ser mulher, de um ser alguém com útero nesse mundo e, por consequência, ser uma pessoa com o poder/missão/fardo (e tantas outras concepções mais que você também pode escolher, mas nem tanto) sobre a geração da vida.
E foi no embate de uma leitura noturna de “Irmãs da revolução: antologia de ficção especulativa feminista” (2023), organizado por Ann VanderMeer e Jeff VanderMeer, com tradução de Marcia Men, que eu passei a conhecer o trabalho da escritora nipo-canadense Hiromi Goto e compartilhar com ela um medo legítimo. Seu texto “Contos do Peito”, publicado pela primeira vez em 1995 (ano em que provavelmente eu me alimentava eventualmente do leite da minha mãe), já me deixou curiosa pelo título. E quanto mais eu avançava nas palavras, mais compartilhava da aflição e desespero daquela mulher que havia parido o seu bebê há pouco e, por isso, sofria com o processo de amamentação. A revolta da personagem me fazia ler muitos trechos em voz alta, principalmente aqueles proferidos por seu insensível companheiro e, posteriormente, pelo seu médico:
“as mulheres amamentam desde que existem mulheres”, “por que você tem de ser tão complicada?”, “você só está pensando em si mesma”.
A dor de um seio inchado, empedrado, rachado e que precisava ser sugado de hora em hora, me fez sentir medo.
O conto de Hiromi, para uma breve felicidade feminina, termina com a sua personagem fazendo aquilo que não conseguia há dias – dormir tranquilamente. O elemento da especulação é admirável ao permitir a jovem mãe retirar o seu próprio seio e implantá-lo facilmente em seu marido, transferindo todo o pavor da natureza para um outro corpo.
E é nesse sentido que o medo, como substantivo feminino, ultrapassa até mesmo a gramática da língua, já que o feminino aqui trata-se muito mais do efeito do medo – e o que causa medo – a um corpo que performa o feminino. Corpo e medo, portanto, ainda parecem guardar entre eles um pacto interessante, curioso e dolorido sobre quais lugares esses corpos monstruosos – usualmente ligados ao gênero do horror, mas amplamente abordados pela FC como o “outro” – significam.
Nessa toada, filmes brasileiros como “Medusa” (2021), de Anita Rocha da Silveira e “Solon” (2016), de Clarissa Campolina, tão díspares em seus modos de narrar, me fazem pensar na forma como esses corpos, entendidos como mulheres, são capazes de especular sobre seus papéis no mundo. No caso de Medusa, a questão da reprodução tampouco é abordada, mas a ideia de um corpo que foge das regras – um corpo que sai à noite sozinha, um corpo que dança abertamente ou até mesmo um corpo que aproveita seus próprios prazeres – parece assustador em meio a uma sociedade em que a extrema-direita, o machismo e a intolerância impera. As mulheres aqui, inclusive, se rebelam umas contra as outras, e a gangue das Preciosas – com sua fundamentação calcada na religião –, passam a perseguir as “outras” que fogem do comportamento esperado. Outra vez: são as mulheres que vivem com medo.
Já em “Solon”(disponível aqui) o ambiente inóspito e infértil é o cenário perfeito para o surgimento de um corpo – ora, de uma mulher, não é mesmo? – que se adapta, se move, performa, verte, rega e nutri a própria terra. O nascimento da mulher enlameada e o contorcionismo de um corpo que parece dançar a música da dor, me levou imediatamente ao sofrimento da jovem mãe do conto de Hiromi, que até compreende suas responsabilidades maternas, mas não possui liberdade para senti-las (ou livrar-se delas) da forma que achar melhor. Ao mesmo tempo, o sono de alívio dessa mãe, agora livre do peso de seu seio, é capaz de provocar a mesma satisfação dos berros ensurdecedores das mulheres de “Medusa”, que enfim, parecem se alforriar de seus medos: o medo de não agradar, o medo de ficar sozinha, o medo de não poder desfrutar de seu próprio corpo, o medo de não poder dizer que não, você não concorda com isso.
Assim, se do medo nascem as dúvidas e, em casos mais palpáveis, a revolta, ele parece, então, uma substância fundamental quando do ponto de vista feminista, principalmente em seus saberes localizados, para utilizar um termo de Donna Haraway (2009). O que dizer, agora, do ser mulher – essa que é, muitas vezes, vista como o “outro do homem”, o que dizer de seus medos? Eu diria: coloquem todos eles para fora, os assuma, os grite, os coloque em movimento. Esse é um dos segredos para uma boa noite de sono.
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