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Velhice e distopia amazônica: O Último Azul

Carolina Oliveira










Desde o início do ano eu estava esperando “O último azul”, filme de Gabriel Mascaro, lançar nos cinemas brasileiros, e mesmo antes disso, ele já fazia parte da minha lista de filmes da minha tese de doutorado, que têm nas personagens femininas a sua discussão central.


Apenas com a sinopse e o trailer, eu imaginei por meses um filme completamente diferente: a distopia me parecia algo triste, o cata-velho, um carro gradeado do governo que saía por aí recolhendo os idosos para levá-los a um lugar de descanso, só me fazia pensar que a história seria um lamento sobre a forma como enxergamos a velhice.


Mas a surpresa foi boa e, apesar dos simbolismos habituais invocados pela noção de liberdade — a gaiola, os pássaros presos e o desejo de voar de Tereza —, ou seja, nada de muito inovador nesse sentido, os encontros e a maneira como cada uma das personagens enxerga a sua própria vida invocaram — apesar de um futuro terrível para quem envelhece e quem assim o está —, uma possibilidade de futuro bastante irreverente e engraçada — para não dizer que é totalmente trágica.


Trailer do filme "O último azul"

Tereza (Denise Weinberg) é uma mulher de 77 anos que recebe uma ordem do governo para parar de trabalhar e se mudar para uma colônia habitacional de idosos. Apesar de já saber o que a esperava, Tereza acreditava que ainda havia alguns anos até que tudo isso acontecesse de fato. A péssima notícia a faz lembrar de um desejo antigo: o de querer voar.


Tereza passa a buscar uma forma de conseguir andar de avião e chega a uma alternativa clandestina, obviamente, já que uma pessoa da sua idade precisa de autorização para poder viajar. É quando ela encontra Cadu (Rodrigo Santoro), um barqueiro que leva e traz encomendas pelo rio, e o que parecia ser uma relação baseada em interesses econômicos se mostra mais profunda e apoiada na troca de experiências.


Cadu ensinando Tereza a pilotar o barco | Fonte: Maxiverso
Cadu ensinando Tereza a pilotar o barco | Fonte: Maxiverso

São os momentos de palavras não trocadas e o barulho do motor do barco que ajudam a construir a relação dos dois. Cadu, em um mergulho apoiado por uma boia colorida e uma caixa de som, encontra o caramujo da baba azul, animal que permite ver o futuro. À primeira vista, Tereza estranha tudo isso; afinal, quem em sã consciência encontra um caramujo no meio da Amazônia e derrama a sua baba nos próprios olhos?


Essa magia meio científica, alucinógena, amazônica e excitante faz Cadu compreender que o seu trabalho foi responsável por perder sua esposa — muito trabalho, pouco tempo. Nessa espécie de crise existencial, Tereza aprende a dirigir o barco — “se aprender a dirigir um, consegue dirigir qualquer um”, comenta Cadu, que a ensina todos os passos.


As cenas de Tereza navegando indicam, de certa forma, uma espécie de voo pelas águas, uma maneira de ela mesma se conhecer e, na contramão de tudo, obedecer apenas às suas vontades. Tereza conhece outra faceta da liberdade e da solitude, agora no meio da floresta amazônica. Tudo isso é rapidamente minado por sua filha Joana (Clarissa Pinheiro), que a denuncia para o governo.


A parte sinistra que eu imaginei começa aqui: Tereza é capturada e presa no cata-velho. Ela recebe uma mochila do governo com tudo o que precisa, incluindo aí uma garrafa d’água e uma fralda descartável, que ela é obrigada a vestir. E é com apenas isso que Tereza consegue armar uma situação — a fralda que vaza. Diante da impaciência dos mais jovens, um garoto se irrita com a situação, já que os banheiros químicos foram retirados do local; ela consegue se desvencilhar do grupo e fugir.


Tereza volta a viver a sua aventura navegante, agora de maneira mais perigosa e com um monte de gente do governo atrás dela, uma vida bem agitada para uma idosa que estava prestes a descansar para o resto de sua vida. E é nessa parte que o filme fica ainda mais instigante; afinal, a única pessoa que pode ajudá-la é a misteriosa Roberta (Miriam Socarrás), uma mulher preta, cubana, idosa e que sobrevive vendendo bíblias digitais por 250 reais — bíblia essa que fala de um Deus em que Roberta não crê.


Tereza e Roberta tomando banho | Fonte: Mídia NINJA
Tereza e Roberta tomando banho | Fonte: Mídia NINJA

As duas se tornam amigas, cúmplices, e Roberta conta para Tereza que ela só é livre porque comprou a sua liberdade. Tereza, inspirada na nova companheira, começa a bolar um plano doido: conseguir dinheiro em uma cidade que Ludemir (Adenilo), um garoto que ela conhece na empreitada de voar, diz que é maravilhosa para ganhar — e perder — dinheiro.


Agora é Tereza quem encontra o caramujo da baba azul e agora, destemida, ela pinga a baba nos seus olhos. Ela aposta todo o dinheiro — e o barco “Caridad” de Roberta — em uma rinha de peixes e, para a nossa alegria, ela ganha e, dessa forma, subentendemos que sua liberdade será comprada.


Nossa protagonista não tem um final exatamente melancólico, como eu havia imaginado antes de assistir ao filme. E mesmo ao acordar com uma propaganda aérea do governo sobre o futuro da nação, que acredita na colônia como a melhor opção para as pessoas idosas, Tereza segue navegando em busca de seu futuro, ideia que até parece estranha ou pouco comum quando pensamos na vida das pessoas idosas, já que, de certa forma, as enxergamos como pessoas do passado e que já viveram tudo aquilo que poderiam viver.


Imaginar outros futuros para a velhice é ultrapassar as ideias de conforto, descanso e trabalho cumprido que normalmente rondam a nossa sociedade, na qual anos das nossas vidas são integralmente dedicados a um objetivo utilitário e progressista. “O último azul” consegue falar sobre isso de forma surpreendente, navegando sem rumo, mas com propósito, conhecendo pessoas no trajeto e descobrindo amores inusitados.


O futuro é para todos mesmo.


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