O controle de narrativa e o conceito de verdade em "Amanhecer na Colheita"
- André Agueiro

- 20 de ago.
- 6 min de leitura

Qual é o grau de realidade naquilo que consumimos na mídia? Qual seria de fato a narrativa correta e, consequentemente, mais fiel ao “real” entre tantos desdobramentos políticos e sociais a que somos expostos diariamente?
Poderia facilmente continuar por mais tempo com uma progressão de perguntas nesse mesmo viés, que foram e continuam sendo discutidas no campo filosófico, como faz David Hume — que é citado diretamente no livro que trago hoje, por exemplo. Em particular na década atual, em que o conceito do que é “real”, ou não, se perde no meio de inúmeras tecnologias disponíveis a todos que podem alterar facilmente provas de determinado acontecimento.
Questionamentos similares e às diferentes perspectivas sobre o que é real e o que não é — incluindo críticas perspicazes contra inteligências artificiais e a noção da verdade num período pós-moderno —, fazem parte dos temas predominantes discutidos em "Amanhecer na Colheita", novo prequel da saga de Jogos Vorazes, escrita por Suzanne Collins.

Collins nunca escreve livros apenas para lucrar em cima de uma saga já muito popular e estabelecida no imaginário cultural mundial. O que mais atrai na mensagem que pretende passar é que em todos os livros, inclusive o prequel anterior, "A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes" — que conta a história pregressa do Presidente Snow —, ela sempre expõe críticas claras e relevantes sobre as tensões sociais que estão presentes no cenário mundial da atualidade.
"Amanhecer na Colheita" conta a história de Haymitch Abernathy, vencedor da 50º Edição dos Jogos Vorazes e mentor de Katniss e Peeta na 74º Edição, apresentada na trilogia principal. Suzanne Collins discute, dentre outras ideias, como a mídia é, talvez, a responsável crucial para que o poder hegemônico, isto é, aquele comandado por poucos, permaneça impondo um regime autoritário sob as massas, que muitas vezes não têm o discernimento necessário para analisar criticamente aquilo que está sendo apresentado como a “verdade”, uma vez que recursos importantes para a construção do pensamento crítico — como uma educação de qualidade — são cada vez mais negados e diminuídos, para que nunca instigue ninguém a desafiar o status quo.
O controle midiático de Panem é evidenciado desde os primeiros capítulos, contando a maneira em que Haymitch é selecionado na Colheita e como ele vai parar nos Jogos Vorazes, não sendo sorteado, e sim sendo forçado a ser o substituto de outro garoto. Toda a cena da Colheita é devidamente manipulada para que os espectadores realmente pensem que nada fora do habitual havia acontecido, e que ele simplesmente teve o azar de ser sorteado dentre tantos outros meninos, omitindo toda a confusão causada pela morte de um tributo que não aceitou ser selecionado. Algo que também chama a atenção é como Plutarch revela abertamente a intenção da Capital em ter filmagens da reação dos familiares dos sorteados e como isso poderia ser benéfico ao tributo enquanto lutava na arena, para vender a história com mais credibilidade na narrativa que pretendiam emular, e que no livro, colabora para a própria narrativa construída ao redor de Haymitch durante seu tempo lutando nos Jogos.
Além dessa reflexão já trazida logo no início da história, a parte pós-Jogos foi a que mais marcou minha experiência de leitura, pois é nesse momento que o ponto crucial sobre a trajetória de Haymitch é revelada — a versão que Katniss assiste na fita da 50º Edição em Em Chamas é repleta de distorções que não foram reveladas antes.
Ao acompanhar Haymitch narrando o que acontece em primeira pessoa, percebe-se como a Capital foi capaz de esconder todas as verdadeiras intenções de suas ações na arena, o mostrando como um concorrente frio e muita das vezes sem remorsos, sendo que uma das características mais presentes no interior do personagem é justamente o contrário disso, como sua alta capacidade de empatia perante à situação de todos os tributos — crianças e adolescentes que foram submetidos a lutar até a morte —, o que o incentiva a querer destruir aquela Edição dos Jogos e mostrar a vulnerabilidade da Capital em relação às massas. Todavia não é isso o que ocorre, e para o público geral, Haymitch é apresentado como um clássico malandro, que fez de tudo para vencer os Jogos usando o poder da lábia — tanto para conquistar os corações de patrocinadores, quanto para explorar as vulnerabilidades de seus oponentes na arena e enfim sair vitorioso. Para o leitor que acompanha o protagonista tendo acesso às suas motivações e pensamentos mais profundos, essa “narrativa” de personagem atribuída a Haymitch para o público externo é completamente oposta aos sentimentos dele, que em todo o decorrer dos Jogos teve sempre a intenção de se sacrificar com um objetivo — tentar atingir a Capital expondo sua real fragilidade.
Infelizmente, o que ele não esperava é que todas as suas tentativas seriam em vão, e que por pelo menos mais 24 anos — até conhecer Katniss e ela enfim iniciar a revolução — teve que lidar com essa imensa frustração que o perseguia todos os anos ao ver dois novos tributos de seu Distrito sendo levados como sacrifício para os Jogos.
O poder de neutralização da mensagem que Haymitch queria passar aos espectadores é evidente, pois por mais que ele tenha tentado não ser mais um “pôster” promocional dos princípios da Capital, foi justamente isso o que se tornou ao não conseguir atingir o que era mais essencial — desmantelar o poder de controle narrativo que era exercido naquele regime.
Sem a verdadeira exibição dos fatos, a população dos Distritos via Haymitch como mais um tributo que se vendeu à Capital e aos seus interesses, perdendo completamente sua essência rebelde que tanto tentou externalizar para incitar esperança nas pessoas que eram mantidas sobre a mão de ferro daquele regime autoritário. Haymitch se tornara então mais uma peça nos Jogos da Capital.
Ao traçar um paralelo com Katniss e toda a narrativa de “amantes desafortunados” que construiu com Peeta, pode-se afirmar que a diferença crucial foi que o momento de Katniss se mostrou mais propício para uma revolução, pois a vitória dela e de Peeta quebrou uma regra até então inflexível da Capital — em que só um tributo sairia vivo —, provocando assim uma onda de esperança generalizada na população. Afinal, se dois tributos do Distrito mais pobre conseguiam violar uma regra tão irredutível pela primeira vez em 74 anos, eles também, se permanecessem unidos e lutassem, poderiam destruir a hegemonia da Capital sob os Distritos, se vendo finalmente livres de ter de sacrificar seus filhos todos os anos nos Jogos Vorazes.
Por isso, deixo aqui um convite à reflexão — será que narrativas construídas por nações imperialistas e que até hoje se apresentam como “salvadoras” são realmente críveis? Qual é o nível de confiança naquilo e qual o interesse por trás? Collins sempre foi crítica a como os Estados Unidos controla todo um viés de pensamento no Ocidente, pois muitas de suas ideologias são espalhadas dentro do sistema capitalista, as quais infelizmente ainda se perpetuam nas massas as mantendo presas num ciclo de sofrimento sem fim, e que todos os dias desde seu surgimento, continuam exterminando os mais vulneráveis em detrimento da manutenção do poder da minoria mais abastada — o exemplo mais claro disso é como o conflito entre Palestina e israel é difundido na mídia norte-americana e como se vende a história de que os palestinos são terroristas terríveis e que querem a todo custo roubar a "Terra Prometida" de israel, quando na verdade, todos sabem, ou deveriam saber, que isso não passa de propaganda imperialista para que os EUA continuem sendo, segundo eles, "a maior potência do mundo", assim como Panem se vendia como essencial para a manutenção da paz dentro daquele regime extremamente autoritário e cruel.
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André, grande texto! Tocou num mecanismo essencial para perpetuar uma ferida profunda, ao longo das eras, e concluiu com um exemplo arrasador. Parabéns.