
Eu estava dentro do meu próprio carro, mas não podia assumir a direção, pois um tio distante – mais velho e rabugento – não me deixava. A rota que seguíamos eu tampouco conhecia e, quando chegamos, descobri que participaria de uma festa em família que eu não havia se quer recebido o convite. Foi o tempo de descer do banco do passageiro que eu vi tudo sem poder dizer nada: meu tio entregou as chaves do meu carro para outro homem que, devolveu outras para ele. De repente o meu velho carro se transformou numa bugiganga automotiva gigante – “ele vendeu sem a minha permissão?” –, me perguntei já meio que sabendo a resposta. Arranquei a nova chave das mãos dele com raiva e entrei sozinha e destemida nesse carro novo, tecnológico e sem graça. Tentei sair do lugar e não consegui, eu estava presa num videogame –, o que eu via através do vidro era um 3D malfeito da rua. Saí muito brava dele, mas foi a primeira vez que eu consegui gritar de ódio. Acordei e percebi que tudo não passava de um sonho, ufa!
Passei dias pensando sobre esse sonho e, ao mesmo tempo que ele me soava familiar, o alívio de não ter vivido essa situação foi grande. A impotência, quase como algo universal, provavelmente já foi sentida e vivida por todas – e todos – em diferentes graus e situações, quiçá por nós, mulheres, com mais frequência. E foi com esse sentimento de “que sonho bobo e esquisito”, que eu seguia procurando nos meus arquivos pessoais o que me intrigava e, numa manhã, ao olhar para o cantinho da estante de livros, escondido por sua pequenez, eu me deparava com o livro de Roquia Sakhawat Hussain (1880 – 1932), que eu havia lido há alguns anos.

Roquia foi uma escritora feminista que nasceu em Bengala –, atual Bengala Ocidental e Bangladesh. Em 1905 ela escreveu o conto “O sonho da sultana” (Sultana’s Dream), esse mesmo que eu reencontrei na minha pequena pilha de livros em meados de 2025. Me peguei pensando: entre o meu sonho bobo e o sonho da sultana, o que poderia haver em comum?
No conto de Roquia, a sultana compartilha um universo peculiar onde as mulheres “trocam de papéis” com os homens, à época, uma possibilidade de imaginar um mundo em que a opressão feminina tivesse sido de alguma forma, superada. Ainda que a simples “troca de papéis” também seja problemática quando olhamos para o conto com os olhos de hoje, o recorte proposto por Roquia é importante por ter se tornado um dos primeiros contos da literatura bangali que se tornou um clássico do subgênero da ficção científica feminista. Essa inversão não é, obviamente, a solução para os problemas de gênero, contudo, ela abre para reflexões sobre um assunto fundamental e amplamente discutido pela escritora: o direito das mulheres à educação formal.
Isso fica bastante evidente quando, no diálogo travado entre a sultana e sua amiga, Sara, conhecemos a história de mulheres que trabalham em laboratórios resolvendo problemas práticos da sociedade; mulheres à frente das decisões políticas do país e, também, as mulheres na direção das universidades.
Deixe-me contar um pouco da nossa história. Trinta anos atrás, quando nossa atual rainha tinha treze anos de idade, ela herdou o trono. Era rainha apenas no nome, o primeiro-ministro é que realmente governava o país. Nossa gentil rainha gostava muito de ciência. Ela baixou um decreto dizendo que todas as mulheres em seu país deveriam ter educação formal. Assim, um grande número de escolas para meninas foram fundadas, apoiadas pelo governo. A educação espalhou-se entre as mulheres. E o casamento precoce foi interrompido. Nenhuma mulher tinha permissão de se casar antes dos 21 anos. Devo dizer que, antes dessa mudança, estávamos restritas pela purdah. (tradução: Lady Sybylla, p. 26)
A purdah é uma prática que permite o isolamento das mulheres da vida pública, algo que, no conto de Roquia foi completamente subvertido. As mulheres, ao poderem estudar, competir e criar, oferecem uma nova perspectiva para a sociedade que, antes, governada pela lógica da zenana (costume que reserva uma parte da casa comente as mulheres, isolando-as), passa a ser instituída pela mardana – um sistema capaz de anular todos os problemas relacionados ao crime, por exemplo, oferecendo um mundo menos violento.
De modo geral, a zenana não é, de fato, encerrada na história, mas transferida aos homens, ou seja, a lógica opressiva permanece. Contudo, as aspirações sonhadas não perdem o seu valor, principalmente se a localizarmos no tempo: uma história feminista escrita em pleno início do século XX, momento em que a primeira onda do feminismo ainda se estabelecia e a luta pelos direitos políticos se popularizava.
Se a sultana de Roquia fora capaz de fabular mudanças tão importantes para as mulheres e que, de alguma maneira, avançaram de lá pra cá, por que eu, mais de um século depois não seria capaz de sonhar com novas mudanças, mas velhas e ultrapassadas atitudes de uma sociedade machista e que ainda nos julga como inferiores ou incapazes? Fiquei pensando se eu havia mesmo acordado do meu sonho e se o sonho da sultana seria somente um sonho mesmo. Talvez os nossos sonhos pudessem se misturar em nossas diferentes realidades, talvez haja um pouco de sonho na realidade, muito da realidade em nossos sonhos, ou talvez seja tudo uma coisa só mesmo. Ambas acordamos com raiva, mas com a vontade – e a capacidade – de poder sonhar sonhos melhores daqui pra frente.
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