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Óperas Espaciais e o esgotamento do mito expansionista

Gabriel Mello












A ficção científica sempre foi o espelho mais polido, e mais distorcido, do nosso imaginário sobre o futuro. Entre seus subgêneros, a ópera espacial ocupa um lugar de prestígio: épica, grandiosa, repleta de impérios estelares, guerras interplanetárias e dilemas heroicos. Contudo, à medida que avançamos para a segunda metade do século XXI, há algo desconfortavelmente datado nessa fantasia de expansão cósmica. Talvez estejamos testemunhando o esgotamento do mito que a sustenta: o mito expansionista.


As space operas nasceram, historicamente, como transposições do imaginário colonial do século XIX para o cosmos. O espaço sideral era o novo “Velho Oeste”, um território de conquista e descoberta. Séries clássicas como Flash Gordon (1934) e Buck Rogers (1928) transformaram o desconhecido em palco para aventuras heroicas e impérios masculinos. Décadas depois, "Star Trek" (1966) e "Star Wars" (1977) reformularam o mito, mas não o romperam. A “fronteira final” da Frota Estelar ainda ecoava o espírito expansionista norte-americano, enquanto a saga dos Jedi reencenava a luta entre o império e a rebelião em termos épicos e místicos, herdeiros diretos das epopeias clássicas e do romantismo moderno.


"Star Wars: O Despertar da Força"
Cena de "Star Wars: O Despertar da Força". (Imagem/Reprodução: Twentieth Century Fox)

Porém, o século XXI parece menos interessado em expandir o mapa do cosmos do que em decifrar seus custos. O fascínio pela colonização espacial, antes sinônimo de esperança, agora carrega o peso de nossas ruínas planetárias. "The Expanse" (2015–2022), talvez o último grande representante da ópera espacial “tradicional”, já é uma obra de transição: o espaço não é mais uma promessa, mas uma extensão das desigualdades da Terra. Belters explorados, corporações planetárias em guerra fria, um futuro em que a humanidade repete seus vícios de dominação sob gravidades diferentes. É, em essência, o mito expansionista colapsando sob o próprio realismo.


Vivemos um tempo em que o discurso da “conquista do espaço” saiu da ficção e voltou a ser propaganda. A SpaceX e outras empresas privadas ressuscitam a retórica messiânica da colonização: Marte como novo Éden tecnológico, o “destino manifesto” da espécie humana. É curioso notar como esse discurso reproduz, quase sem disfarces, o mesmo imaginário das antigas space operas: o herói visionário (Elon Musk como um novo Flash Gordon corporativo), a promessa de um “novo começo”, o abandono da Terra como falência moral e econômica. Mas o público leitor, e espectador, de hoje parece menos disposto a embarcar nesse êxtase colonial.


As óperas espaciais contemporâneas mais interessantes não celebram a expansão; interrogam-na. Becky Chambers, em "A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil

" (2014), substitui o heroísmo por convivência multicultural e ética da empatia; uma ficção do cotidiano interestelar, não da conquista. Em "Herdeiros do Tempo" (2015), de Adrian Tchaikovsky, a ascensão de uma civilização aracnídea mostra o quanto o humano é apenas uma das muitas narrativas possíveis no cosmos. E em Fundação (2021–), adaptação da obra de Asimov, vemos uma tentativa de revisitar o mito imperial com consciência de suas falhas: impérios caem não apenas por corrupção, mas por esgotamento cultural.


Esse esgotamento é, a meu ver, o ponto central do debate atual. O imaginário expansionista que estruturou o século XX, do progresso linear à fé no domínio tecnológico, não se sustenta mais diante da crise climática, do colapso ecológico e da saturação simbólica das narrativas de conquista.


Continuar escrevendo óperas espaciais como se o espaço fosse uma tela em branco soa, hoje, anacrônico. O universo já não é um vazio a ser preenchido por impérios humanos, mas um palco onde projetamos e performamos nossas contradições.

A space opera que sobreviverá ao século XXI não será aquela que canta a expansão, mas a que reflete o recolhimento. Não mais o impulso de conquista, mas o da compreensão. Não o império que se ergue, mas a consciência que se dissolve diante da vastidão cósmica. Talvez a nova epopeia interestelar não seja sobre dominar o espaço, mas sobre aprender a existir nele sem repetir os mitos que nos trouxeram até aqui.


Se as óperas espaciais do passado foram epopeias de conquista, as da contemporaneidade, talvez, precisem se tornar elegias. Não pela morte da humanidade, mas pelo fim de suas ilusões.

1 comentário


Guilherme dos Reis
há 3 dias

Muito boa a análise! Não tinha reparado nessa mudança, faz todo sentido. Gostaria de acrescentar a vanguarda do filme "Inimigo Meu", que em 85 já questionava a ideia de guerras estelares e conquista do espaço para trazer uma reflexão sobre existir num Universo povoado por raças inteligentes diversas.

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