Nos últimos meses temos vivido – e respirado – ares que, de modo bastante desanimador, parecem ter saído de uma ecodistopia infeliz. Assim, as questões ecológicas, circundadas e agravadas cada vez mais negativamente pelas ações humanas, têm tentado nos fazer recordar de algo que insistimos em esquecer: de que as questões ambientais não dizem respeito a alguma nação em particular, mas a de que elas são – ou deveriam ser – questões globais.
Ainda que possamos discutir – e apontar – as responsabilidades de cada país, tendo em vista a imensa colaboração daqueles ainda mais ricos e “desenvolvidos” para os cenários catastróficos, temas que envolvem a escassez e a destruição da natureza deveriam ser do interesse de qualquer sociedade. Nesse sentido, muitas histórias – da literatura ao cinema – têm se ocupado (ou já se ocuparam) em demonstrar os efeitos aterrorizantes da nossa sede por poder e nossos desejos por coisas materiais – coisas essas que acabam virando lixo no nosso planeta.
Assim, em meio a um cenário encoberto pela fumaça das queimadas – não naturais –, e que atingem o Brasil desde a metade deste ano, o ar irrespirável, a fuligem, a morte de animais que tampouco conhecemos e a vida das pessoas, têm sido engolidas pela fumaça com frequência tal que, nossos pulmões – quiçá, um dia – se acostumarão e, pior, se tornarão resistentes ao que nos faz mal.
Essa é uma hipótese que, espero, ainda que com poucas esperanças, não se concretize. Contudo, o próprio cinema brasileiro – ainda rarefeito no que se refere às questões do gênero da FC – já as havia debatido em meados da década de 1970 e 1980. Dois filmes emblemáticos do período e que conseguem dialogar com as consequências sobre acontecimentos recentes como as queimadas no Brasil são: Parada 88: o limite de alerta (1978), de José de Anchieta, e Abrigo Nuclear (1981), de Roberto Pires.
Realizados durante os “anos de chumbo”, ambas as histórias recorrem à imagem das terras devastadas, promovendo à época, uma alegoria do próprio regime ditatorial que, ao serem observados pela contemporaneidade, conseguem ultrapassar seu tal espírito do tempo.
Em Parada 88 a inspiração, como conta o diretor, veio justamente dos problemas respiratórios de seu filho devido a poluição de São Paulo. O filme se passa 6 anos após um acidente em uma indústria química, a população sobrevive em túneis de plástico e o oxigênio tornou-se raro e caro – é preciso pagar para respirar. Joaquim Porfírio (Joel Barcellos) é um dos primeiro ciborgues do cinema brasileiro, já que ao sair da cidade por conta de uma aposta, acaba danificando seus pulmões e, por isso, passa por um transplante do órgão. Sua filha e esposa ficam na cidade, a garota Ana (Regina Duarte) é cega e, na ausência do pai, acaba sendo vítima de estupro – cometido pela própria polícia da cidade que é responsável por cobrar a “conta de ar”.
Já em Abrigo Nuclear, a população sobrevive em um abrigo subterrâneo há anos e que fora construído com o intuito de preservar a raça humana, já que a superfície – segundo os cientistas – tornou-se altamente radioativa e inabitável. Todavia, ao longo do filme, os habitantes que são controlados pela comandante Avo (Conceição Senna), acabam por recuperar as memórias – fotografias, vídeos e dados antes inacessíveis (propositalmente) – para tentarem compreender e nutrir uma esperança de viver uma vida ao ar livre. Encabeçados pela professora Lix (Norma Bengell), uma equipe de cientistas-rebeldes passa a investigar com mais cuidado sobre a superfície e descobrem que, é possível sim voltar a superfície, já que ela não é tão perigosa quanto parece.
Interessante notar que, apesar de ambas as histórias destacarem com veemência as questões ecológicas – o ar como nocivo a saúde, não simplesmente por ser, mas por ter sido tornado assim por nós mesmos, a ideia de trancafiar, isolar e afastar é comum e curiosa. Pagar pelo oxigênio ou ser impedido de respirar é, de certa forma, uma realidade bastante próxima e cada vez mais recorrente, afinal, que pode pagar pela saúde, moradias em locais arborizados, alimentação adequada e lazer de qualidade?
Nos filmes, os finais indicam uma saída do subterrâneo, uma liberdade (e possibilidade) de buscar uma outra vida. Nas histórias, ainda há para onde correr – um lugar em que o ar não fora completamente contaminado ou que é possível viver em harmonia. Já no nosso mundo, fora das especulações cinematográficas, essa esperança é um pouco tímida diante das decisões tomadas por grandes corporações e que almejam sempre o lucro em detrimento da vida.
A nostalgia pelo ar puro nos filmes é fruto de um passado longínquo no qual ações simples somo respirar eram, realmente, um direito de todas (os). Mas é no presente poluído, cada vez mais desigual e assustador que as histórias reverberam, um presente que poucos de nós se deram conta de estar vivendo, mas que nossos pulmões provavelmente já passaram a sentir.
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