As nossas noções de arte não nascem conosco, lhe asseguro. E percebi isso quando menos estava pensando: jogando videogame.
Quando adolescente, meu conceito de arte tinha contornos cristalizados que só faziam se enrijecer com aquela coisa tradicional da época que nos faz buscar a individualidade por meio do absoluto de nossas opiniões tão certas e inflexíveis. Será que é apenas um sinal de geração? Bem, pergunte para um adolescente ao seu alcance o que ele acha que é arte.
O que eu achava que era arte, enfim, foi desafiado quando descobri o jogo Shadow of the Colossus (2005). Quando eu pensava em arte, me vinha à cabeça o Louvre, o MaM, Da Vinci, Tarsila, Villa-Lobos, Bach, Basquiat e todos os demais nomes que eu via nas aulas de arte.
Mas nunca tinha visto um game durante as aulas, para ser sincero.
Talvez dizer que esse jogo “é uma obra de arte” me soasse como uma metáfora. Quando vi, contudo, as vastas Terras Proibidas que servem de palco para o jogo, a metáfora se pulverizou.
Servir de palco, na verdade, é bastante reducionista, visto que o ambiente é um personagem silencioso que nos acompanha; se mostrando com a abertura da câmera do jogo ou nos espezinhando e cozinhando nossas expectativas ao aproximar o foco. Diria que o “sabor” fantástico de Shadow of the Colossus está no vazio e na contemplação, às vezes involuntária, das Terras Proibidas.
O jogo não apresenta logo de cara (talvez em hora nenhuma) uma história com enredo completo e bem esmiuçado, mas escolhe elementos-chave para entregar conjecturas sobre a narrativa assíncrona do que pode ter acontecido naquele lugar, o que vai acontecer com o protagonista se ele interferir e o que está acontecendo neste instante. O presente é a força motriz aqui, mas o passado sim que marca a viagem e é o tempo do qual é falado.
Se posso ajudar você a se localizar com o fiapinho de história que ganhamos, digo que o protagonista é um mancebo chamado Wander, que está em uma missão para trazer de volta à vida Mono, uma jovem de mais ou menos a idade do protagonista e que foi sacrificada por fins religiosos obscuros. De alguma forma, Wander descobre sobre (ou é contatado por, não tenho certeza) uma entidade misteriosa chamada Dormin, que promete reviver Mono se Wander lhe fizer um pequeno favorzinho de nada:
Matar dezesseis colossos de pedra que aprisionam os fragmentos da alma de Dormin. Coisa pouca.
Como você vai poder notar durante os primeiros segundos de jogo, Wander não é lá o jovem mais destro. Seus golpes são equivocados, ele é desequilibrado e um tanto inexperiente. Contudo, é dotado da qualidade mais desejada a um herói desta envergadura: coragem.
Certo, agora é só matar os vilões de pedra e recuperar a donzela em perigo, certo?
Você já deve ter sentido que a resposta é não.
O jogo, embora repetitivo e limitado em sua premissa, tem facilidade em roubar a atenção do jogador ao presentar sempre com novidades e desafios distintos as incursões aos colossos. A calmaria entre as batalhas é o que dá o embargo na garganta, pois é nela que sobrevém a cruel dúvida: o que estamos fazendo, exatamente?
Libertando a alma de Dormin pela Mono, é claro. O que, porém, isto significa? Quais as consequências? Foram nessas contemplações que as reações químicas do meu cérebro pintaram para sempre uma noção arraigada do que eu até hoje entendo por arte.
A magia de Shadow of the Colossus, compreendi, estava em seus vales e ruínas solitários, e na maneira como eu mesmo os habitei por algumas horas.
Dr. Matheus, quase tive vontade de ter um videogame! Interessante pensar que na contemplação, contrária ao comum ritmo de videoclipe, pode-se encontrar a reflexão e a beleza, epítome da arte, em um caminho qual o de Santigo de Compostela, feito de pixele e tempo.