A simplicidade de ser herói
- Frederico Cavalcanti

- 1 de set.
- 3 min de leitura

Sem julgar quem está fazendo o quê na zona de guerra, há de se perguntar: é mesmo verdade que há Turismo de Guerra? Pessoas estão pagando para assistir, registrar em fotos e vídeos, marcas do desejo de viver (?!) o turismo sobre a morte! - pessoas bombardeadas em um local de dor e sofrimento que se mescla a das discussões políticas atuais acerca do abuso, das ideias de terrorismo e de distinção entre governo e povo.
Tudo regado a sorrisos, para assistir a uma guerra real, como se em tela de cinema: seria esta uma tela da vida real, diante dos olhos cegos de quem sucumbe ao fascínio de seres humanos assassinando outros seres humanos? Heróis matando monstros ou monstros divertindo-se às custas da barbárie perpetrada?
Nesse sentido, quem é o inimigo? O que é vitória? Existe vitória quando todas as mãos estão banhadas em sangue? O sangue próprio, bem como o de outrem, deveria estar nas mãos, tingindo o toque, ou dentro do corpo, alimentando a vida de cada célula que o compõe?
O que poderia, ou deveria, mais inspirar o ser humano do que o heroísmo? Por que o heroísmo estaria então tão associado à guerra, à luta para vencer o outro, a massacrar adversários?

No ocidente, pode-se dizer que muito da cultura vigente, desenvolveu-se a partir do modo de ser helênico, apreendido pelos romanos, que dominaram até 476 d.C. Vejamos Conan. Hércules. Aragorn, o rei destinado a retornar ao trono e restituir sua linhagem no clássico de fantasia “O Senhor dos Anéis”. Trata-se do Aretê, do ideal grego da excelência: o aprendizado máximo nas artes marciais e na arte da retórica.
Como um homem poderia ser herói sem Aretê? O heroísmo tem sido baseado na competição, como se fazia na observação dos feitos da guerra e dos Jogos Olímpicos. A competição expressa-se como elemento fundante da substância do herói, que deve ser um vencedor helênico.
Estranho é pensar que competir seja algo heroico e natural e supostamente belo. Competição pressupõe um paradigma de falta e de não partilha, de necessidade de eleição, ou imposição, da posição de um sobre o outro, portanto, uma senda de desamor, desigualdade e desentendimento.
Para contrapor a visão hegemônica, analisemos a relação entre Frodo e Samwise Gamgi, a dupla tolkeana de heróis improváveis, despojados de grande treinamento de combate, nenhum superpoder. O poder de ambos residia na amizade. Ali, a competição sequer figurava como regra, aquele jogo focava a importância de salvar o mundo.
O heroísmo construiu-se não pelo guerrear, no senso específico de ferir, e sim pela capacidade de persistirem no caminho, de serem capazes de carregar um ao outro, até nas costas.
O desafio: O Um Anel de Sauron, mais presente e vilão que o próprio. Enfim, a maldade residia no encontro do Anel com a oportunidade de corrupção que cada ser angustiado revelava ao encarar seu portador, Frodo.
Assim, Boromir, o herói de mil batalhas, forte e educado no Aretê de uma versão gondoriana, o arquétipo do grandioso herói, sucumbiu à tentação do Anel, como Isildur. Frodo, também sucumbiu, porém, chegou aonde Boromir não foi capaz.
Talvez heróis também possam cair. Boromir reergueu-se para ajudar Frodo, antes de quase colocar a perder o esforço descomunal e heróico já feito pela Sociedade do Anel. E Samwise Gamgi, munido do poderio da amizade, sustentou a tudo que se dispôs, por afeto e senso de responsabilidade, sem sucumbir.
E se todos que são oprimidos e, ainda assim, resistem e não desistem, forem considerados como verdadeiros heróis: artistas, cientistas, profissionais honestos, garis, professores, pessoas que se não trabalham hoje não têm o pão amanhã?
Leitores, em nossa simplicidade, com respeito, ética, bondade e gentileza, que se levantam após cada queda, sim: podem ser mais herói do que se propõe ou imaginam. Você que acorda, apesar da dor e do sofrimento, e encontra razão para ser e cuidar do outro, sendo verdadeiro. Torne-se ou mantenha-se como um Samwise Gamgi, talvez mais do que seja capaz de pensar ou admitir, tornando o legado da fantasia um estado tangível ante os desafios que a vida nos impõe.
Referências:
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Consultoria da edição brasileira, Danilo Marcondes. Tradução de Desidério Murcho ... et al. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. In: Dicionário de Filosofia. Org. Sérgio Biagi Gregório. Sítio Eletrônico: https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/aret%C3%AA?authuser=0
TOLKIEN, J. R. R. (John Ronald Reuel). 1892 – 1973. O Retorno do Rei: Terceira Parte de O Senhor dos Anéis / J. R. R. Tolkien; tradução de Ronald Kyrmse. – 1 ed. – Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil. 2019. 608 p.
(Turismo de Guerra). CNN – Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/viagemegastronomia/viagem/turismo-de-guerra-deve-crescer-quase-75-e-valer-us-927-mi-ate-2035/




Excelente texto! Nos convoca a ver o heroísmo com outros olhos e olhares. Ademais, não temos heroísmos em alguns atos cotidianos?
Maravilhoso texto! Seus pontos de vista cabem/refletem muito a realidade que vivemos hoje.
excelente!
O texto remonta também algo sobre Banalidade do Mal com o sentido do espetáculo da dor e do sofrimento.