Abaixo o Dia do Saci!
- Celina Falcão

- 17 de out.
- 4 min de leitura

Eu fui uma adolescente comicamente clichê.
Todas as manhãs, eu me arrastava para fora da cama uns bons quarenta minutos antes do necessário para passar lápis preto diretamente dentro dos meus olhos ensonados e me certificar de que minha franja estava perfeitamente chapada. Meu iPod nano roxo tocava Three Days Grace no último volume. Minhas calças — mais rasgos do que calças. E eu ainda me lembro da indignação absoluta que senti quando minha mãe, provavelmente segurando meus fones de fio na mão para conseguir ser ouvida, fez uma longa defesa da comemoração do Dia do Saci em detrimento do Halloween.
Como o ser evoluído que ela é, minha mãe sempre teve horror ao meu amor pelo Halloween, que era meu feriado favorito desde criancinha. O Estranho Mundo de Jack (1993) talvez tenha sido o começo dessa história de amor com o terror. Ela odiava a ideia de acrescentar ao mar de feriados católicos uma data comemorativa que considerava tremendamente imperialista — e a proposta da nova festa caiu como uma luva. Em Fortaleza, a justificativa do Projeto de Lei aprovado em 2007 foi a seguinte:
“[...] chamar a atenção para o resgate das lendas do nosso folclore, para que se torne uma comemoração das tradições brasileiras. A escolha do dia 31 de outubro, quando é comemorado o Halloween (Dia das Bruxas) nos Estados Unidos — festa que a cada ano atrai mais crianças brasileiras — é proposital. A intenção deste projeto é ensinar às crianças que o país também tem seus mitos, difundindo a tradição oral, a cultura popular e infantil, os mitos e as lendas brasileiras.” (Redação da justificativa da PL 0189/2007, do vereador Guilherme Sampaio.)
Na época, lembro de ter me sentido pessoalmente insultada. A motivação parecia nobre, mas “Dia do Saci” era simplesmente xoxo. Capenga.

Hoje fico feliz em dizer que, embora continue passando lápis no olho e escutando hits do pop punk dos anos 2000, me tornei mais parecida com minha mãe — sempre preocupada com uma abordagem decolonial da cultura e com a valorização dos mitos e lendas brasileiros. Mas sigo incapaz de superar minha decepção com essa solução.
E eu não pareço ser a única detratora. O Dia do Saci é uma comemoração oficial no estado de São Paulo desde 2004, mas nunca vejo celebrações com essa denominação. Há quem atribua a falta de adesão à hegemonia da cultura norte-americana ou à falta de divulgação. E eu acredito que nosso infeliz viralatismo tem um papel nessa história — mas não acho que seja só isso.
Mais do que uma celebração folclórica, eu penso no Halloween como uma comemoração do medo. O Samhain celta, o All Hallows’ Eve, o Dia de Finados e o Día de los Muertos têm em comum a ideia de que, nessa noite, o véu que separa o mundo dos vivos e dos mortos está mais fino. Há um imaginário de escuridão, do mórbido, da morte como parte da natureza — mas como iminência. Essas celebrações, me parece, não são atraentes apenas porque criam a oportunidade de transmitir mitos e lendas, mas por sua relação direta com o desconcertante sentimento de finitude.
Talvez a ideia pareça menos palatável para um universo infantil, mas acho que é justamente por isso que o Halloween conquista os jovens. A máscara e a fantasia, além de permitirem o lúdico fingir ser o outro, permitem flertar com a alteridade, com o desconhecido. Talvez eu seja utópica, mas acredito que a juventude tem fome de transgressão e sabe, melhor que outros grupos, explorar o medo e o estranho. Acho que o clichê existe por um motivo: os jovens gostam de histórias de fantasma.
Eu gosto muito da ideia de promover o folclore brasileiro, de centralizar os mitos e lendas afro-brasileiros e indígenas e, especialmente, de instituir, neste país “laico”, um feriado que não seja sobre santos, igreja ou colonização. Mas o que eu temo é a perda do que sempre me pareceu um feriado para comemorar a escuridão, a alteridade, o medo como força criativa.
Hoje já não sou contra o Dia do Saci. Acho um feriado importante, que merecia estar mais presente nas escolas, na mídia, na cultura. Mas sigo com a sensação de que o nosso folclore poderia se prestar muito mais ao horror do que costumamos permitir. Cumacanga, Matinta Pereira, Boitatá: todos são figuras inquietantes, obscuras, que flertam com o terror. Reduzir a cultura brasileira à versão domesticada de Monteiro Lobato — como faz, inclusive, a própria PL 1128/2003, que deu origem à lei em São Paulo — é desperdiçar a potência sombria dessas narrativas. Perdemos a chance de criar um feriado que celebrasse não só a travessura e a imaginação, mas também o medo como força criativa.
Continuo sonhando com um feriado nosso, que celebre a escuridão sem perder o objetivo pedagógico do contato com o folclore nacional. Uma noite brasileira dedicada ao medo, ao desconhecido e ao desconforto — que não são monopólio do Norte Global, mas também fazem parte do nosso imaginário.
REFERÊNCIAS
entenda-como-celebracao-chegou-ao-brasil-e-qual-a-relacao-com-o-folclore.ghtml>
Acessado em 14 de outubro de 2025.





que leitura gostosa! amo a ideia de celebrar o medo e o macabro através de símbolos nacionais 💞