Recentemente saiu a lista de indicações para o Oscar 2024. Para a surpresa de ninguém, nenhum filme de terror figura entre os prestigiados da categoria “Melhor Filme”. Eu imaginaria que Pobres Criaturas (que ainda não pude assistir até o momento, pois só estreia em território nacional na semana posterior à qual escrevo aqui) traria todo aquele ar estranho e incômodo típico do diretor grego Yorgos Lanthimos, que, com um pouco de boa vontade, poderia se encaixar no gênero de terror como segundo gênero, mesmo que por acidente. Não pude estar mais errado. O filme parece se situar entre fantasia (ou, de forma mais apropriada, ficção científica) e algo que flutua entre a comédia e o romance. Qual seria o grande problema da Academia com o gênero terror, então?
Avaliando em retrospectiva, temos na história da premiação que apenas 6 filmes, que podem também ser considerados de terror, concorreram à melhor filme: O Exorcista (1973), Tubarão (1975), O Sexto Sentido (1999), Cisne Negro (2010) e Corra! (2017). A maioria são obras que potencializam carreiras de diretores já consagrados como M. Night Shyamalan e William Friedkin, além do fato que Tubarão criou uma mítica popular sobre a violência dos tubarões e Corra! foi escolhido pelo Sindicato dos Roteiristas da América (Writer's Guild of America) em 2021 como melhor roteiro do século XXI. Enquanto houveram polêmicas da premiação, como em 2019, quando o longa Green Book (2018) faturou a estatueta sob alfinetadas de outros diretores e profissionais do cinema, e no caso de 1999, quando Shakespeare Apaixonado (1998) desbancou clássicos do cinema como O resgate do soldado Ryan e A vida é bela (ambos de 1998); é visível a má vontade da Academia em reconhecer obras de terror e premiá-las, só fazendo-se no caso de um clássico imediato, um filme com selo de qualidade de Steven Spielberg ou o roteiro mais importante do século, por exemplo.
As escolhas da Academia ainda são parcialmente um mistério, mesmo que algumas pistas sejam dadas. O que está claro é que as escolhas são decisões políticas. Nenhuma bandeira específica, a política do Oscar flutua com a época, afinal os membros da academia se renovam conforme passam as gerações, fazendo um leva-e-traz de pautas e o que merece ou não ser prestigiado. A chave para compreender a ausência do gênero terror no Oscar, portanto, é a ideia de “prestígio”.
Outras premiações, mesmo em áreas como esporte, acabam mostrando escolhas de premiações pelo prestígio em detrimento de uma decisão minuciosa pela qualidade, também. O jogador de futebol Lionel Messi ganhou, agora em janeiro, o prêmio The Best dado pela própria FIFA (Federação Internacional de Futebol). Seus números na temporada não foram tão expressivos, embora sua contribuição para o futebol ao longo de sua carreira seja inegável e única. A FIFA, portanto, fez a opção política pelo prestígio em detrimento do mérito. Coincidência? Fugindo da discussão antes que deságue em teorias da conspiração, investiguemos as implicações do conceito de prestígio.
O verbete implica na influência sobre outras pessoas e opiniões, logo, um resumo do que pode ser “capital social”. Prestigiar quer dizer dar preferência ante a sociedade e os pares. A indústria cinematográfica, principalmente entre as décadas de 1940 e 1950, se esforçou em separar a emergente sétima arte entre alta e baixa cultura, respectivamente ao que conhecemos hoje como “filme A” e “filme B”. Os ditos “filmes B” eram mal vistos: eram moralmente “podres”, mal-produzidos (embora um motivo talvez tenha conduzido ao outro, ciclicamente) e causavam prejuízo aos proprietários de salas de cinema. O cinema de terror, portanto, tem sua história intrinsecamente ligada à política da época, ganhando força, na década de 1960, como elemento de contracultura. A própria ideia de terror, portanto, era de um gênero inferior e “de mau gosto”, ainda que essa opinião não tenha sido totalmente abandonada na época.
A semiótica talvez seja realmente complicada, pois, com o que lida o terror? Demônios, monstros grotescos, fantasmas, assassinos violentos e doses cavalares de sangue espirrando pelas telas e escorrendo dos livros. O que, em primeiro momento, pode suscitar discussões sobre natureza humana, ética, racismo e até mesmo cotidiano - mesmo que bons sustos sirvam apenas como um entretenimento interessante, ou seja, o medo em um ambiente controlado - também pode afastar. Esse afastar parece uma explicação um tanto oca, mas aqui entra nossa palavra do dia: prestígio. O afastamento a priori de obras de terror tem um engate social forte. Seja por questões religiosas, comunitárias, ou em um sentido mais lovecraftiano, o medo do desconhecido, que vem a se tornar uma repulsa. Esse sentimento se encaixa - ou mesmo gera - um sistema de retroalimentação que desprestigia o terror e incute no indivíduo a repulsa a priori, que completa o ciclo por alimentar o desprestígio por si. Isso se estende a várias instituições, como, é claro, a Academia.
O terror, em suas diversas mídias, tem, portanto, seu papel social. Não apenas como entretenimento (que ressalto, é de tanta legitimidade quanto qualquer outra mídia), mas como um papel social que luta para nos lembrar sobre nosso medo e criticar qualquer convenção social, política e cultural. O autor britânico Neil Gaiman defende a existência de obras que abordem e tratem o medo para crianças, com obras sensivelmente voltadas a elas. A obra que melhor exemplifica foi escrita pelo próprio: Coraline. Segundo o próprio, não é uma obra sobre o medo, mas sobre a coragem.
Coragem, talvez, seja uma lição das obras de terror muito pertinente e necessária em nosso tempo.
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