"A Bruxa" e sua magia
- Caio Capella

- há 2 dias
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No frio de uma manhã cinzenta, uma família de colonos é expulsa de seu assentamento. Seguem em uma pequena carroça por uma estrada precária, observando a chama da civilização ficando para trás. Adentram o ermo desconhecido. Ao cair da noite, aninham-se ao redor de uma fogueira, circundados pelos mistérios noturnos. Na alvorada, ajoelham-se frente a um campo aberto. Ao fundo, árvores cinzentas e desnudas circundam esse novo éden. Esta é a abertura de The Witch (2015).
A Bruxa (The Witch: a New England Folktale) é, sem dúvidas, um dos filmes de terror mais influentes da última década. Mas, o que podemos aprender a partir deste filme? Aqui apresento uma pequena reflexão sobre o percurso de nossa bruxa Thomasin a partir da eficácia simbólica do saudoso Lévi-Strauss (1908-2009).

Desde anciãs de pele curtida pelos anos, longos cabelos brancos apoiadas sobre cajados em torno de caldeirões fervilhantes, jovens seminuas dançando em transe na floresta, as rebeldes urbanas que se insurgem contra o sistema ou as consortes demoníacas que rogam pragas encobertas pela mortalha da noite – todas essas são representações da bruxa.
Essas figuras podem ser conectadas à desobediência primordial no mito judaico, segundo o qual textos obscuros afirmam que Caim teve uma primeira mulher. Essa consorte foi moldada do barro, assim como o primeiro homem, e não feita a partir de sua costela. Lilith, a mãe de todos os demônios – feiticeira, consorte do diabo, aquela que se recusou a deitar-se sob Adão e, por isso, foi banida do Éden.
Minha análise, no entanto, tem um recorte um pouco mais modesto: a figura da bruxa na região da New England, como o próprio filme sugere. Esta região é formada por seis estados no nordeste americano: Connecticut, Maine, New Hampshire, Rhode Island, Vermont e por fim Massachusetts onde, em 1628, fundou-se a colônia Massachusetts Bay Colony. O assentamento Naumkeag foi renomeado – como sinal de boa fé entre os colonos – para Salem.
É fundamental mencionar o tribunal das bruxas em Salem, marco sangrento na história da região e no imaginário coletivo acerca da bruxaria no ocidente. De janeiro de 1692 a maio de 1693 cerca de duzentas pessoas foram acusadas de bruxaria; trinta foram consideradas culpadas e dezenove foram mortas por enforcamento (quatorze mulheres e cinco homens). Este episódio é fortemente enraizado no conceito de eficácia simbólica.
Hoje, ainda é possível ver as marcas do tribunal na cidade. Ao redor do cemitério, pequenas lajotas foram colocadas – afinal, bruxas não poderiam ser enterradas em terra santa – com os nomes de todas as vítimas do tribunal. Sobre cada lajota, além do nome, ano de nascimento e execução, visitantes deixam velas, flores, conchas e até pequenos itens ocultistas, como pentagramas.
A caça às bruxas em Salem foi a mais violenta no novo mundo, e apenas chegou ao fim devido à desconfiança do clero acerca das evidências de forças demoníacas. Anos depois, muitas das acusadoras – em sua maioria garotas adolescentes – admitiram ter fabricado suas denúncias. O tribunal de Salem, tornou-se, assim, um dos casos mais notórios de histeria coletiva.
Este é o ponto fulcral para esta análise: o foco das acusações impetradas pelas adolescentes era o da aflição (affliction) – a manifestação de estranhos comportamentos das jovens, como alucinações e visões espectrais, convulsões, crises e outras perturbações corporais. Tais sintomas foram creditados à ação demoníaca.
A eficácia simbólica é, portanto, um elemento essencial para compreender como essa histeria pôde se sustentar. Segundo Lévi-Strauss, os símbolos têm o poder de influenciar não apenas a mente, mas também o corpo. Em seu célebre texto A Eficácia Simbólica (1975), o antropólogo descreve como o rito de um xamã auxilia uma mulher em trabalho de parto. O rito, ao ser performado, reencena o parto em uma esfera espiritual — onde as forças sobrenaturais que o impedem são vencidas — e, ao se dissolverem ali, permitem que o parto ocorra no mundo físico.
Símbolos – sejam palavras mágicas como Abrahadabra, enns infernais como Renich Tasa Uberaca Biasa Icar Lucifer, quadrados mágicos ou runas – possuem eficácia, não em si, mas na crença que o indivíduo e o coletivo projetam sobre eles. Um exemplo cotidiano? A senhora recita diariamente os salmos 23 e o 91 em busca de proteção divina, o habitual “Se Deus quiser” ou o simples “Obrigado”.
Antes, porém, que Salem se tornasse o exemplo máximo da histeria coletiva e do medo das bruxas no Novo Mundo, The VVitch nos transporta à um tempo anterior – quase uma prequela do horror coletivo à partir do horror particular de uma jovem e sua família.
O filme se passa no ano de 1630, no qual o colono William e sua família são expulsos do assentamento por pensamento dissidente – um ponto central do filme, já que a perspectiva do patriarca é retratada como fanática. Assim, enxergamos o fenômeno sob outro viés: o do embate entre o coletivo e a trajetória individual de Thomasin, que se torna bruxa primeiro pela acusação, e depois, pela aceitação.
Lévi-Strauss, em O feiticeiro e sua magia relata a história do jovem Quesalid – registrada por Franz Boas – que inicialmente busca desmascarar falsos feiticeiros/xamãs. No entanto, ao longo do processo, torna-se aprendiz e, por fim, um feiticeiro de renome, não por desejo, mas pela crença coletiva em seu poder. O poder do xamã, assim como a eficácia simbólica, não depende apenas de si, mas da fé depositada nele.
Thomasin passa por um processo semelhante. Após o desaparecimento de seu irmão Samuel, seus pais passam a acusá-la de feitiçaria. Com o sumiço e morte de Caleb, os gêmeos a acusam também, e ela os acusa em resposta de falar com o bode preto, Black Phillip. O horror culmina na morte dos gêmeos, do pai — morto pelo próprio bode — e, por fim, no ato desesperado de Thomasin, que mata a mãe em legítima defesa. Nada mais lhe resta.
Nesse momento, Thomasin abandona tudo o que foi — ou acreditava ser — e implora a Black Phillip que fale com ela. Ele responde com a célebre frase: “Wouldst thou like the taste of butter? A pretty dress? Wouldst thou like to live deliciously?” Ao se transfigurar em um belo homem, ele a orienta a despir-se e assinar o livro negro.
Despir-se, aqui, é abandonar tudo o que se foi e o passado para abraçar o novo, é atravessar o abismo e encontrar no coven uma comunidade que a acolhe por aquilo em que se transformou: a bruxa. É aceitar o papel que antes lhe fora imposto como acusação — e, assim, convertê-lo em libertação.
E afinal, qual a magia da bruxa?
A subversão.
Ao transitar pelos tabus da sociedade e ousar ser diferente. A bruxa, mais do que uma pessoa, é um arquétipo entalhado no inconsciente coletivo acerca do feminino insubmisso, que desafia a divindade ao escrever seu nome no livro negro, em busca da liberdade.
À todas as vítimas da ignorância e histeria coletiva dedico esta singela reflexão:
Bridget Bishop, Sarah Good, Rebecca Nurse, Elizabeth How, Susannah Martin, Sarah Wildes, Rev. George Burroughs, George Jacob Sr., Martha Carrier, John Proctor, John Willard, Martha Corey, Mary Eastey, Mary Parker, Alice Parker, Ann Pudeator, Wilmot Redd, Margaret Scott, Samuel Wardwell Sr.





Realmente a subversão é uma magia, transforma realidades... Análise muita boa de um filme muito bom.
A força geradora assusta os fracos da força ativadora. Texto rico e cheio de referências pra se aprofundar. Parabéns e viva as bruxas!