As encarnações da fantasia entre mídias, gerações e humanidades em "Dungeons & Dragons"
- Volnei Freitas

- 4 de ago.
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Ao longo de suas muitas encarnações, Dungeons & Dragons – D&D para os íntimos – permanece como um dos pilares que alimentam o imaginário fantástico moderno.
O jogo, inicialmente inspirado em aventuras a lá Tolkien e Espada & Feitiçaria, mais do que um jogo para interpretação de papeis heroicos (RPG) a partir do uso de regras e dados, é a expressão de um anseio profundo: o desejo de encontrar o Belo Reino – veja o conceito aqui – esse lugar simbólico onde coragem, amizade e magia se entrelaçam na luta contra forças que devoram a alma do mundo.
Contudo, o que constitui esse específico reino de fantasia e como ele resiste, renasce e se adapta a tantas gerações?
Na década de 1980, o desenho animado Caverna do Dragão (nome adaptado ao português, cujo original era justamente Dungeons & Dragons) traduziu a experiência de aventura do sistema de RPG para um público infantil com uma estética acessível e lições morais claras. Lembro claramente de, aos doze anos, debater os episódios na escadaria do colégio com meus amigos, e de tentar assistir ao box em blu-ray (lembra ou sabe o que é?), percebendo que a linguagem já não mais me cativava.
Ainda que tenha conquistado corações, o grupo de jovens transportado para o Reino – Hank, Sheila, Eric, Presto, Bobby e Diana - expressando os tipos de personagens possíveis (classes) nas edições iniciais – revelava uma abordagem heroica ainda muito ligada ao ideal ariano de bravura e pureza.
Diana, a acrobata negra, era a única representante de uma minoria, e mesmo sua representação era marcada por estereótipos.
No entanto, naquele mundo habitado por dragões de múltiplas cabeças, vilões unidimensionais e mentores enigmáticos, como o Mestre dos Magos, já se plantava a semente de uma fantasia mais ampla e generosa, onde cada personagem possuía um poder próprio, que só encontrava sentido na colaboração com os outros. Fato plenamente experimentado no episódio “O Cemitério dos Dragões”, no qual os jovens derrotam o Vingador e, por misericórdia e nobreza, Hank não o executa.
O Belo Reino, ali, idealizado e até embrionário, expressa os conceitos universais da fantasia, mas ainda não plenamente inclusivo.
Avancemos para o século XXI.
O RPG se transforma: as edições de D&D evoluem em acessibilidade e mecânicas. E diversidade. De um sistema complexo e muitas vezes excludente, surge uma experiência mais acolhedora. As regras da 5ª edição, revisitada em 2024, não só simplificam a entrada para novos jogadores à experiência de suas ricas ambientações (cenários, para os RPGistas) como também estimulam a construção de mundos onde a diferença é a norma. O herói não precisa mais ser um humano guerreiro de cabelos dourados, ele pode ser uma tiefling de pele lilás, um elfo não-binário, uma orc anciã ou um goblin monge pacifista. O Belo Reino começa a incluir os rejeitados, os estranhos. Os invisíveis.
Esse novo horizonte se reflete também em outras mídias. O filme Dungeons & Dragons: Honra entre Rebeldes (2023) apresenta um grupo de protagonistas improváveis. Entre eles, uma bárbara interpretada por Michelle Rodriguez, com uma certa “quedinha” por halflings, e uma druida tiefling (raça em cujo sangue jaz o efeito de ancestral demoníaco) que se transforma em um monstro. A aventura é leve, emocionante e abertamente divertida, mas também aponta para um novo paradigma: o herói pode ser falho, diverso, engraçado. Não se trata mais de salvar o mundo por glória, mas por afeto e para sublimar as escolhas do passado. O público agora, mais amplo: não apenas adolescentes nerds oitentistas, mas famílias, adultos nostálgicos e jovens espectadores conectados com pautas contemporâneas.
Ainda mais ousado, a recente Dungeons & Dragons: O Berço da Rainha, primeira animação do projeto Nível Secreto, da Amazon Prime (dos mesmos criadores de Love, Death & Robots, da Netflix) em pouco mais de doze minutos mergulha em temas sombrios e existenciais, com um elenco composto por personagens de minorias raciais e de gênero. Temos um grupo majoritariamente feminino formado por uma paladina tiefling, uma maga halfling e uma druida meio-orc, acompanhadas por um monge anão, todos ao lado de um único humano amaldiçoado e portanto, em crise.
A inversão é simbólica.
O humano, outrora modelo hegemônico de heroísmo, agora é o estranho que precisa de ajuda. O Belo Reino aqui é território dos que historicamente ficaram à margem. A fantasia se torna, neste contexto, um espelho, além de profecia. Revela, além do que fomos, o que podemos ser.
Dungeons & Dragons, portanto, transcende o jogo: torna-se um organismo vivo que, responde às mudanças culturais, ao mercado, e ressoa profundamente os valores da fantasia – amizade, sacrifício, descoberta, empatia, transcendência. Em cada uma de suas iterações - do RPG de mesa ao cinema, da TV aos quadrinhos – revisita e reforma o mito do Belo Reino.
A futura série televisiva em produção, que une Hasbro e Netflix, provisoriamente denominada “Reinos Esquecidos” (“Forgotten Realms”, no original) pode, se bem conduzida, assumir esse legado; não apenas como entretenimento, mas como arte que revela caminhos, integra vozes diversas e reinventa o sagrado mítico em uma linguagem acessível e vibrante.
Porque o Belo Reino não está em um mapa!
Ele se insinua nas decisões do grupo, na coragem de enfrentar o próprio medo, na generosidade de ceder o último feitiço para o amigo ferido. Ele se revela quando, numa mesa de jogo ou numa tela iluminada, alguém percebe que aquilo que o torna diferente é justamente o que o torna poderoso. Como uma ponte feita de magia entre mundos, Dungeons & Dragons nos convida a atravessar juntos os limites da fantasia para tocar o que há de mais real em nós.




Volnei expressa através das palavras, conhecimento e sentimento de décadas, que flui entre o jogo e os jogadores. Parabéns!
Interessantíssimo. Para mim, o Belo Reino é uma forma de funcionar do Self, um modo de viver e, definitivamente, uma senda de interpretação e experimentação da realidade. Estas associações e críticas, relacionadas ao D&D, ficaram muito percucientes! Grato demais!
O texto para quem acompanha os D&D lá dos primórdios, nos mostra acima de tudo a evolução que o RPG vem sofrendo com o passar das decádas, se tornando algo mias abragente, inclusivo e plural, tanto em suas histórias quanto em seus cenários.
Excelente linha do tempo, partindo lá do desenho animado do passado que todos conhecem até a série que ainda está em produção (futuro).