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Foto do escritorBeatriz Rosany

Noctem faminem



Um cheiro diferente faz parar o ritmo natural da noite, quando o andar é lento e atento para pular na primeira coisa viva que aparecer a fim de saciar a fome insaciável.

Imóvel. Sente as folhas úmidas nas solas do pés, fareja o singelo e único aroma vindo de algum canto: lado, baixo, alto... Parece que a brisa noturna quer esconder a novidade como se fosse tesouro, mas só instiga mais e mais. Cada veia pulsa e cada músculo se contrai com a possibilidade de cravar os dentes e unhas na novidade que, pela primeira vez, parece saciar apenas com um cheiro.

Ainda imóvel. Olhos grudados na escuridão banhada por uma lua nova e estrelas vazias. As mãos apoiam o corpo agachado, onde a pele exposta se funde com o frio do crepúsculo e um caminho até o tesouro parece se formar — direita, no mais alto, próximo ao cruzeiro do sul —. Então, outros movimentos se aproximam: matilhas buscando saciar sua própria fome, rangendo dentes, miseráveis e ferozes, com orelhas em pé e olhos brilhantes.

O mais alto da copa de uma árvore se torna abrigo para quem caça só, frágil e vulnerável. Por um instante, o único som é o do choro de todos que estão, incansavelmente, enfrentando a noite atrás de uma presa. De cima tudo parece distante e as estrelas, antes vazias, viram distração pra aliviar a fome e cobertor para trazer o sono. A sensação vem acompanhada de um nó entalado na garganta porque a fome dói, mas não se saciar dói muito mais. O sono não vem e uma lágrima solitária escorre e vai de encontro ao tão distante chão.

Então, um sussurro doce e agudo se junta aos outros sons, mas esse não é de choro. Chega até os ouvidos e acalma o coração. O som tem o cheiro do tesouro escondido em algum lugar e dá vontade de correr e chorar enquanto o devora. Porém a voz suave abraça o corpo e o aquece, os olhos pesam e o aroma de mil flores envolvidas em poeira estelar invade a mente e faz o coração pulsar em paz. O sono vem. O mais alto da copa vira lar seguro para repousar.


***


A aurora irradia trazendo raios do sol, iluminando com gentileza toda a extensão de terra e carinhosamente acorda quem antes dormia em paz. Existe uma leveza grande e, por um breve momento, parece que não existe uma fome feroz revirando o estômago. Após descer da árvore tudo o que se sobra para fazer é esperar a noite. Pela manhã, é possível ver as criaturas da noite anterior e todas — como sempre — parecem apenas miseráveis, não mais ferozes. Um leve cumprimento de cabeça basta para declararem a paz momentânea.

A matilha repara enquanto essa Criatura solitária vaga. Todos se olham e respiram de forma cansada e pesada.

“Quão cansativo deve ser não ter alguém? Não poder dividir a dor de não se saciar?”

Os olhares continuam a seguir os passos leves enquanto o ser solitário adentra mais a densa mata.

“Muito. Deve cansar muito.”

Seguindo floresta adentro a Criatura também se pergunta como deve ser não ter toda a fome para si e por que merece o fardo de ser só. Todos tem seus bandos para tornar mais suportável, todos ganham vantagem quando a noite se apossa dos nervos, todos compartilham muito com um olhar e ser só é quase tão irritante quanto essa latente agonia na barriga lembrando que ainda não é suficiente, que nunca será o suficiente.

Após vagar algumas horas se deparando com grupos maiores e menores, mais velhos e mais novos, encontra uma conhecida claraboia. Uma vegetação densa forra o local, lembrando caudas volumosas de felinos. Caminha sentindo as texturas das plantas e deita olhando para o alto. Fica ali por longos minutos se concentrando com os olhos fechados, deixando o ar entrar pelo nariz e encher os pulmões até ouvir alguns estalos. Então, sente uma aproximação lenta e curiosa. Se senta e vê uma criatura mais jovem. O pequeno se assusta quando percebe a presença de mais alguém ali, porém um leve aceno de cabeça e um sorriso fazem o ser mais jovem se sentar também e fixar o olhar em busca de comunicação.

“Achei que seria divertido andar por aqui, parece um lugar calmo antes da noite.”

“Você não consegue me ouvir, consegue?” O jovem vira a cabeça para os lados e se mantém muito curioso.

Naquele momento, permanece entregando falas para quem não parece às receber, mas que atentamente segura o olhar no seu. A criatura mais velha carrega tristeza também, mas parece ser tão mais profunda que a que tem dentro de si. Brinca um pouco com capins soltos, olha para o céu e respira com calma. Se balança e olha mais uma vez para quem lhe faz companhia em silêncio.

“Sabe, nunca me perguntei muitas coisas durante a manhã, pois estamos sempre tentando descansar o corpo e pensar em lugares novos para a caçada. Mas você não parece se preocupar com isso agora, me pergunto, por quê?”

A mensagem da jovem criatura se fixa no fundo da mente criando linhas e linhas de pensamento. Por um breve momento está completamente dentro de sua própria mente e busca ferozmente uma resposta, até que a memória de um cheiro e uma voz abruptamente corta todas as linhas criadas. Levanta e encara uma última vez o ser mais novo ainda sentado. Percebe que seu bando está próximo — várias outras criaturas mais jovens correndo enquanto duas mais velhas observam atentamente tudo —, e agacha novamente se concentrando o máximo em manter o olhar mesmo sabendo que nunca irão lhe ouvir.

“Não sei a resposta, pequena, mas irei descobrir.”

Sai andando com certeza de cada um de seus passos e não olha para trás. Foca apenas no mais alto, próximo ao cruzeiro do sul. A brisa do dia é quente, porém refrescante. O céu se mantém num azul limpo sem a pintura das nuvens, fazendo o sol incandescente ser o maior e mais implacável protagonista dessa paisagem agora aberta. A panorâmica é de tirar o fôlego, com tantos lugares sempre vistos mas, nunca observados. Ao longe, antigos prédios que já foram lar em um passado distante. Quanto mais se aproxima mais se vê lagos, árvores com formatos variados e vegetação belamente seca com cheiro, cor e som de cerrado. Olha para a direita e percebe um grande morro. Escuta um ronco feroz vindo do mais fundo do estômago que corre com afinco para a memória da noite anterior e se sente cada vez com mais vida.


 

Cada passo agora é pesado e difícil porque o cansaço chega. O topo do morro está logo à frente. Um arrepio cresce na ponta dos dedos e avança por todo o corpo — a noite está chegando.

Segura em árvores inclinadas como o solo que pisa, agarrando e deixando marcas nos troncos. Sente o vento do crepúsculo mais uma vez se aproximar e envolver cada milímetro de pele exposta. Usa toda a força dentro de si para continuar a subida até a dor latente dentro das vísceras não permitir a caminhada íngreme. Com as mãos ao redor da barriga se encosta num tronco qualquer.

Um barulho sutil e estaladiço sai das costelas. Umas das mãos tapa a boca para resistir a ânsia que surge, mas não tapa as lágrimas que começam a sair sem controle. Ajoelha e consegue ouvir o sangue do corpo gelar. Sente o fluxo passar pelas veias como se fossem vidros altamente cortantes e o grito trava na garganta, onde existe mais choro preso. Choro grande, dolorido e assim, tudo dói. E quanto mais dor, mais fome e raiva.

Pisa no chão com vigor, se levanta, e no meio de cores turvas e sons abafados lembra para onde andava e segue, mesmo que andar pareça partir cada fibra do ser em milímetros.

– Por favor pare com isso, alguém por favor faça tudo isso parar! – A mão gruda no peito que arde e os passos cessam.

O ar entra mais rápido com as narinas dilatadas. Tudo parece mais silencioso e a dor latente dissipa como se os momentos de terror há segundos atrás nunca tivessem acontecido. Um galho cai ao longe e a informação já não é novidade. Nenhum passo ou movimento é novidade agora, pois tudo está claro, feroz, raivoso e faminto… tudo cheira a fome.

Um cheiro conhecido faz parar o ritmo natural da noite quando o andar é lento e atento para pular na primeira coisa viva que aparecer a fim de saciar a fome insaciável. A vontade de correr livremente morro abaixo passa e a imagem do cruzeiro do sul hipnotiza e direciona para o alto — sabe que o tesouro está logo ali.

O ar está fino, difícil de entrar nos pulmões e logo o topo do morro se revela, apresentando o segredo anteriormente guardado. Um ser, olhando para a vastidão da paisagem. Os ventos se agitam e parecem circundar apenas a magnitude da nova criatura. As folhas das árvores se inclinam em direção ao ser; sua presença é magnética.

A pelagem longa e escura se mescla com a noite e cobre toda a extensão da terra. O aroma do ser invade a respiração, se acomoda em cada partícula e faz a boca entreaberta salivar livremente. Vê apenas cores turvas e embaçadas. Com verocidade crava os dentes no tesouro não mais escondido, mas nada morde.

“Minha criança, olhe para mim.”

Olha com rapidez para cima até entender que a voz sai de mais alto. Reclina o pescoço acompanhando pequenos brilhos que voam livremente dentro do ser. Entende que a pelagem é como membranas transparentes. Sobe o olhar cada vez mais e o rosto do ser se revela.

Existe estrela pura em um dos olhos da criatura. Um brilho sutil e forte que leva embora todas as cores turvas. O coração está forte e a fome… a fome acaba.

“Venha, é seguro. Estás seguro e livre… Escutou o canto, criança. Deixou a brisa levar o perfume para dentro de si. Tudo vai parar agora.”

A paz volta e aquele lugar se torna lar; todas as lágrimas saem de uma vez e soluços vem à tona e tudo o que preso estava.

“Não sei se me escuta mas, sabia que precisava correr para cá. Não entendo — respira devagar para não deixar o dilúvio de choro impedir as palavras — porque tanta fome e como cheguei até aqui, como chegamos a isso! Não entendo porque penso, sendo que antes apenas caçava e agora tudo dói como nunca.”


“Criança, seus olhos são ferozes. Sabes porque está aqui e porque sentia fome. Mas, agora acabou. O que te sacia foi encontrado e dentro de ti, minha criança, permanece. És selvagem e tens que honrar o que se é… o Norte sempre estará ao teu favor e tua dor não virá de fome, pois o que sacia vocês não é comida… É entender quem são.”


Não fala nada e chora. Sente o sono vir e fecha os olhos enquanto a brisa mais uma vez envolve o corpo. As vísceras se aquietam, o sangue volta a esquentar. Escuta as árvores voltando a seguir o vento da noite, o ar volta a ser denso e invade as narinas.

Escuta algo andando e com maestria captura e mata. Sente o gosto, sangue e alívio. Leva o que sobra para o mais alto do morro, fixa o olhar e fogo cobre o pequeno animal, que evapora. O cheiro doce sobe aos céus, onde as estrelas cantam com alegria.

Encara o Cruzeiro do Sul, mas não encontra o Norte. Sabe que saiu para se aventurar e o guiar. Respira com a intensidade de ser e volta para a floresta, ao encontro dos seus para não ser mais só.



Conteúdo presente na edição de SETEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.



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