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Foto do escritorJ. Felippo Gomes

O canto do Rasga-Mortalha

UM CONTO por J. Felippo Gomes






Quando eu era mais novo, costumava ir bastante à casa da minha vó, lá no Pará. Ela morava em uma cidadezinha do interior e, para melhorar tudo, a chácara que ela tinha ficava a uns quinze minutos longe da cidade. Então, por mais que eu amasse minha vózinha, aquela região era assustadora que só. E pensa numa mulher que tinha solução para quase tudo. Parecia mágica, com os chás e as superstições que ela falava. Numa dessas viagens, quando eu tinha por volta dos 10 anos, minha irmã pediu para minha vó contar alguma história assustadora, mesmo sabendo que eu odiava coisas de terror. Ela ficou quieta por alguns instantes, procurando por algo na grande biblioteca que tinha dentro da cabeça... porque ô mulher que tinha história para contar. Depois disso ela estalou os dedos e disse: “Já sei, vou contar pra vocês a história da Matinta-Pereira”. Não sei o que aconteceu naquele momento, mas só de ouvir o nome, meu estômago ‘deu uma embrulhada’ e pude sentir que algo bom não ia acontecer.


Antes de nos reunirmos na sala, uma nuvem preta já começava a cobrir o céu; era certo que uma tempestade ia vir. Fomos para a sala, minha vó sentada na velha poltrona dela, e nós no chão. Aí ela começou:


“A Matinta-Pereira é uma senhora, como eu, porém ela usa roupas velhas e escuras”. Minha irmã riu, perguntando o que tinha de assustador nisso. Mas a minha vó, séria, continuou falando: “Minha querida, ela não é uma senhora qualquer... ela pode se transformar em um pássaro de mau agouro durante a madrugada, aterrorizando todos com seu assobio”. Ela também disse que não ia imitar o assobio por dois motivos: o primeiro porque o assobio era tão característico da Matinta que ela nem conseguia imitar; e o segundo porque, segundo ela, nunca se deveria caçoar dos seres da floresta.


“E ela só para quando lhe prometem algo, geralmente fumo. E aqueles que não cumprem, são amaldiçoados”. Naquele momento, um raio caiu perto, fazendo um barulhão, e eu e minha irmã gritamos assustados. A energia na casa caiu, mas não impediu minha vó de continuar; ela apenas acendeu uma velha e a deixou de lado, iluminando metade do seu rosto. Nem preciso dizer que tudo ficou bem mais assustador...


“Numa certa noite, um homem estava em sua casa, ele já era aposentado, porém era solteiro e nem tinha filhos. Sempre ficava na frente da sua casa, fumando e bebendo, dizem que em uma noite uma rasga-mortalha pousou no portão dele, com olhos negros, o encarando profundamente. A princípio o homem tentou espantar o bicho, mas ele nem se mexeu. Incomodado com a criatura o encarando, ele entrou dentro de casa... e foi aí que o assobio começou”.


Nisso, um vento entrou na sala, fazendo a chama da vela tremer e uns fios de cabelo da vovó mexer. “Um assobio estridente”, ela continuou, “fino e pavoroso, de fazer a base da espinha tremer e seus fios de cabelo se arrepiarem todinhos”. A cada palavra da minha avó, parecia que a tempestade ia aumentando, com o vento criando sons parecidos com assobios... assobios finos e estridentes.


“E, de repente, tudo cessou. O homem, estranhando toda a situação, foi até o lado de fora da sua casa e deu volta nela inteirinha. Mas não havia nenhum sinal da ave que ali estivera. Cansado, porque o som do bicho o deixou acordado além do seu horário, ele se deitou para dormir. O seu descanso, porém, não durou muito, pois o assobio havia retornado”.

Naquele momento, minha irmã e eu já estávamos colados um ao outro, ouvindo com bastante atenção. E por mais que ainda fosse de tarde, a tempestade lá fora deixava tudo ainda mais escuro.


“Eram três horas da manhã, e o velho já não aguentava mais aquele som maldito. E, então, num momento de raiva, ele disse: ‘Volte amanhã para buscar o que tu quer, e me deixa em paz!’” Minha vó fez uma pausa dramática, depois de imitar a voz amedrontada do homem.

Também, como se a própria natureza estivesse ao controle da minha vó, o som que o vento estava fazendo, parou. Ainda ventava, mas o assobio tinha parado.


“O canto parou na mesma hora, e o velho, aliviado, foi dormir. No outro dia, o velho estava de novo na sua cadeira de balanço, fumando e bebendo. Lá pro meio da tarde, uma senhorinha parou na frente do portão e ficou olhando pro velho. Ele já estava meio embriagado, começou a se irritar e gritou: ‘Quê que tu quer? Diga logo e deixe de me aperrear’, e a velha o respondeu: ‘vim buscar o fumo que tu me prometeu ontem’. Ele ficou confuso, não se lembrava de ter prometido nada a ninguém. Óbvio! Enchia tanto a cara que não a memória era toda ruim! ‘Tá louca? Eu num prometi nada para seu ninguém, não. Agora vá e não me irrite, não’. A velha não ficou irritada, apenas o encarou um pouco mais, com olhos negros como a noite. ‘Certeza que tu não me deve nada, não?’, ela perguntou e o velho gritou: ‘ABSOLUTA!’. A velha, então, com o rosto mais parado possível, só se virou e foi embora, sem dizer nada”.


Naquela pausa na adrenalina da história, nós aproveitamos o momento para lanchar e para ela descansar. Quando voltamos, eu e minha irmã só mudamos de lugar e nos sentamos no sofá que tinha, porque sabíamos que a história ia demorar um pouco mais, e nossas costas já estavam doendo.


“Olha, meninos, essa parte ninguém sabe direito... só sabem que uns três dias depois, mais ou menos, esse velho apareceu doente e tava procurando ajuda. Quando foram ver o que ele tinha, ele tava suando frio. Dor no peito, náuseas e dores nas costas. Os curandeiros tentaram de tudo, mas nada deu certo não, e sete dias depois o véi tinha morrido”.

Lembro de me perguntar como sabiam daquela história então, já que aconteceu justamente com o velho. Minha vó disse que o velho quem falou tudo, numa espécie de delírio febril e raros momentos de lucidez. O que dificultou em saberem se era real ou não. Os mais supersticiosos acreditaram, e os céticos duvidaram, mas independente do que tenha acontecido, aquela era a versão que minha vó ouviu, vindo direto da sua mãe, que teve a sorte de ouvir em primeira mão; ou seja, a história não tinha furos e nem foi modificada. Minha irmã e eu agradecemos à vovó pela história e fomos brincar mais um pouco antes de dormir.


***


Alguns dias se passaram. Em momentos em família, minha irmã e eu pregávamos peças e nos divertíamos na chácara, aproveitando cada comida que a vovó fazia. Enfim... a gente se divertiu à beça! Mais ou menos quando a viagem estava chegando ao fim, minha irmã e eu resolvemos brincar à noite na chácara. Em determinado momento, vimos uma coruja pousar na cerca que rodeava o lote. Ela era meio grande, com as penas do corpo de tons escuros, o rosto branco e olhos negros, estranhamente lembrando uma maçã.


Nós estávamos admirados, eu nem lembrava da história que tinha ouvido, estava apenas apreciando aquele belo ser. Mas a admiração caiu no mesmo instante em que ela começou a piar. Acho que eu nunca fiquei com tanto medo na vida quanto eu fiquei naquele momento. O canto dela era pavoroso, tão estridente que parecia alguém passando as unhas em um quadro negro. Meu corpo inteiro tremia involuntariamente; meu coração batia tão rápido que parecia que ele ia pular para fora do meu peito.


Eu não sei quanto tempo eu e minha irmã ficamos ali, ouvindo e vendo aquela criatura amedrontadora... só sei que pareceram horas. Só recobrei meus sentidos quando eu senti um puxão, e vi que minha vó estava puxando eu e minha irmã pelos nossos pulsos. Ela nos afastou de perto da coruja e disse:


“Volte amanhã para buscar o que tu quer.”


Então o canto parou. A ave parecia observar muito bem nós três, mas principalmente a minha vó. Quase como se estivesse gravando os nossos rostos... gravando o rosto da minha vó. E tão rápido quando ela veio, rápido ela partiu, levantando voo e sumindo na escuridão da noite. Minha vó nos virou para ela e perguntou se estávamos bem; assentimos com a cabeça e ela nos abraçou, tentando nos confortar depois daquele breve trauma recém adquirido.


Então, nós entramos; nossos pais perguntaram em tom de brincadeira o que tinha acontecido de tão ruim, já que era “apenas um pássaro lá fora”. Demos aquele riso frouxo concordando e só desviamos do assunto. Não queria relembrar daquilo nem que me pagassem.


Minha vó nos acompanhou até o quarto em que nós estávamos, e nos tranquilizou, falando que não tinha com o que se preocupar, desde que o que foi prometido fosse entregue à Matinta. Pediu, também, para que não comentássemos nada com os nossos pais porque, mesmo se eles acreditassem, não faria sentido os envolver em toda aquela história. Então, acabou virando um segredo entre nós três, e nunca comentamos com ninguém. Não até agora.


***


Bom, no dia seguinte, ficamos o dia inteiro apreensivos, mesmo que estivesse um dia lindo e ensolarado, minha irmã e eu ficamos olhando para a entrada da casa o tempo todo.

Nos poucos momentos que conseguíamos esquecer da Matinta, algum barulho repentino trazia de volta a memória da noite anterior. Lá para o final da tarde, com um pôr do sol lindo, uma nuvem cinza começou a vir na nossa direção. E vinha rapidamente. Naquele ponto, minha irmã e eu já tínhamos sentado na frente da casa, na pura ansiedade, esperando uma velha aparecer. E foi aí que nós a vimos: uma figura na distância, pequena, encurvada e repleta de roupas de tons escuros. No mesmo instante, eu senti um arrepio, como se tivesse visto aquela coisa antes.


À medida que se aproximava, deu para ver que era uma senhorinha, não devia ter mais que uns oitenta anos; era pálida, mas, ainda assim, as maçãs do rosto eram levemente coradas. Quando ela se aproximou do portão, ficou ali, em silêncio, nos observando. Ela era quase igual àquela velha em que a Rainha Má, da Branca de Neve, se transformava. Mas seus olhos eram negros, igual ao da rasga-mortalha, as roupas de tons bem parecidos com os das penas e um corpo um tanto quanto alto e esguio.


Depois do que pareceram horas, ela bateu palma, chamando pelo nome da minha vó, como se a conhecesse. Minha vó apareceu alguns segundos depois, com uma trouxinha na mão, e cumprimentou a senhora. Pelo visto eram amigas de longa data, o que para mim foi uma surpresa, já que não esperava que minha vó fosse ser amiga de um ser mágico e esquisito.


Como eu não era bobo nem nada, falei para minha irmã para fingirmos que estávamos brincando, para ouvir o que elas estavam conversando. Não pude ouvir muita coisa, parecia que estavam apenas botando o papo em dia. Até que eu ouvi:


“Aí, Antônia, me desculpa. Você sabe que eu não resisto a assustar crianças”. Eu senti que ela queria que eu ouvisse... eu olhei de canto de olho e, por um milésimo de segundo, parecia que ela tinha um brilho no olhar. Novamente, senti um calafrio.


E então ela se despediu da minha vó, e foi embora. A nuvem cinza que parecia ter vindo junto com ela foi embora só depois, trazendo de volta aquele dia lindo. Quando minha vó estava voltando, e passou perto da gente, não consegui resistir e tive que perguntar:

“Vovó, a senhora conhecia ela? Eu não sabia!”


Na época, recebi uma resposta meio esquisita, algo que uma criança nunca entenderia. Porém, hoje eu sei o significado de “Ah, meu querido, quando você é a sétima filha, depois de outras seis meninas, você ganha umas habilidades especiais”.




Conteúdo presente na edição de JANEIRO DE 2024 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. A Revista Especular é um selo do GRUPO EDITORIAL LUMINAR

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