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O Conto da Bela e a Fera na sua versão ‘original’ e a apropriação do mito de Eros e Psiquê


"A Bela e A Fera" é um famoso conto de fadas francês escrito em 1740 por Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, conhecida popularmente pelo título de Madame de Villeneuve. Neste conto, a autora aborda uma história romântica repleta de referências e lições, mas também oferece um retrato da realidade das mulheres do século XVIII, especialmente de sua própria vida. Embora se acredite que a versão de Villeneuve não seja a mais antiga da história, é o registro mais antigo dela. Originalmente, essa narrativa era transmitida oralmente, passada de pessoa para pessoa; de geração em geração.

O que pouco é comentado, no entanto, é que a autora se inspirou no mito grego de "Eros e Psiquê", um clássico da mitologia grega e que também foi tradicionalmente transmitido oralmente por séculos antes de ser finalmente registrado em texto por Apuleio, autor romano, como parte de seu livro "O Asno de Ouro". Além da clara referência ao mito grego de Eros e Psiquê, a versão de Villeneuve inclui detalhes e personagens não mencionados em versões mais recentemente popularizadas.

Antes de possivelmente entrar nas curiosas intersecções do conto com o clássico mito, é importante notar a premissa da história de Villeneuve: inicialmente trágica, repleta de eventos que evocam reminiscências das tragédias gregas. Neste ensaio, exploraremos como Gabrielle habilmente teceu uma intrincada trama que aborda esses temas por trás da fachada da literatura infantil.

No início da história, o sofrimento é abordado em múltiplas frentes: o príncipe fera é amaldiçoado por uma fada cruel, que o criou e de quem ela queria se aproveitar; Bela, cuja origem dicotómica, metade princesa e metade fada, desconhecida para ela, é arrancada de seu berço; e o mercador, que perdeu sua filha biológica e a teve trocada por outra criança, sem sequer saber disso. Anos depois, ele também perde sua esposa e sua fortuna, para finalmente condenar-se à morte devido ao simples ato de colher uma rosa para presentear sua filha.

A história de cada um desses personagens começa com acontecimentos dramáticos e grandes conflitos que os levam a buscar intervenção mágica, muitas vezes com consequências boas ou más. Essas intervenções normalmente eram realizadas por entidades com habilidades mágicas, alterando drasticamente o curso de vida dos personagens e, frequentemente, para ganho pessoal. O comportamento dessas divindades se assemelha ao dos deuses em muitos mitos, agindo por impulso, favorecendo ou prejudicando os mortais que cruzarem seus caminhos. A junção desses elementos nos remete ao cenário da mitologia e da tragédia grega.

Ao correlacionar mitologia aos contos de fadas, também encontramos uma correlação com um mito bastante específico: Eros e Psiquê. Eros é uma divindade do panteão grego relacionada principalmente a Afrodite, sua mãe nas versões mais conhecidas dos mitos; ambos deuses do amor que trabalham juntos para unir casais ou amaldiçoar a vida amorosa de seus desafetos. No mito, Afrodite envia seu filho em uma missão para amaldiçoar a princesa Psiquê, forçando-a a se casar com uma criatura repulsiva.

Se essa parte da trama soa familiar, é porque ainda não mencionamos todos os elementos. Outra grande evidência é o amor que as personagens principais desenvolvem por seus interesses românticos, sem julgamento e para além das aparências. Na Bela e a Fera, a protagonista enxerga a beleza interior da Fera, enquanto em Eros e Psiquê o amor floresce apesar de Psiquê não poder ver a verdadeira forma de Eros. As heroínas enfrentam provações e desafios em busca do "felizes para sempre". Ainda, Bela lida com o temperamento indócil da Fera e os obstáculos em seu castelo, enquanto Psiquê, depois de desobedecer às ordens de seu marido para nunca ver seu rosto, trai sua confiança e enfrenta tarefas difíceis impostas por Afrodite, como forma de provar seu valor e amor pelo filho da deusa.

Nas duas histórias, há uma maldição que recai sobre as protagonistas. Bela é vista como uma aberração pela rainha das fadas devido à sua herança mista entre humano e fada, e é condenada a se casar com outra monstruosidade, tão repugnante quanto ela. A maldição de Psiquê, orquestrada por Afrodite, de certa forma falha, uma vez que Eros se apaixona por ela, não a impede de conquistar seu amor. No entanto, o pai de Psiquê consulta o oráculo de Delfos para entender por que sua filha tão bela enfrenta tanta dificuldade para se casar. O oráculo, representante das profecias do deus Apolo, responde que “Psiquê está destinada a se casar com um monstro de grande poder, uma criatura tão medonha e cruel que até os deuses a temem”.


La belle et la bete (A Bela e a Fera); fotografia original do lançamento francês do filme em 1946

Há, também, semelhanças nos cenários das histórias. O castelo da Fera, assim como o palácio de Eros, é belo e vasto, mas não possui serviçais à vista. No castelo da Fera, reside apenas o seu mestre, animais silvestres para entreter a protagonista e, agora, sua futura noiva. Sobretudo, havia um encanto colocado sobre o castelo para que os desejos de seus habitantes se realizassem, e Bela acreditava que essas tarefas se realizavam por meio de serviçais que preferiam se manter ocultos; enquanto que, no palácio de Eros, os serviçais invisíveis realmente existiam e faziam companhia à esposa de seu amo somente durante os breves diálogos que mantinham com ela.

As histórias culminam em conflitos finais. Para Psiquê, o maior desafio é sua própria mortalidade. Felizmente, Zeus concedeu uma bênção ao casal, oferecendo ambrosia à garota e tornando-a imortal. Já o "crime" de Bela reside em não possuir sangue nobre, já que foi criada por uma família mercantil. De acordo com as tradições e os padrões da mãe de seu amado, Bela não seria digna de seu amor. No entanto, a verdade sobre sua origem é revelada por uma fada benevolente. A fada explica que Bela corria perigo na infância, pois a mesma fada cruel que amaldiçoou o príncipe tentou matá-la. Portanto, para protegê-la, a fada a retirou dos cuidados de seu pai, o rei de uma ilha distante, que também era coincidentemente o tio de seu amado, e a entregou aos cuidados do mercador, onde estaria segura.

No século XVIII, na França, é importante lembrar que as mulheres viviam sob a influência restritiva das normas sociais e culturais da época. Sua educação estava tipicamente voltada para habilidades consideradas apropriadas aos seus papéis na sociedade. Embora as filhas de membros da aristocracia pudessem receber algum grau de instrução, essa formação geralmente se concentrava em aptidões domésticas e artísticas, em vez de estudos acadêmicos. Para a maioria, a educação formal era negada, seguindo a crença predominante de que sua instrução deveria ser apenas suficiente para cumprir suas funções como esposas e mães.

O casamento desempenhava um papel fundamental em suas vidas, sendo frequentemente arranjado com base em considerações econômicas e sociais, em detrimento do amor. Após o casamento, enfrentavam uma série de restrições legais e eram submissas aos maridos, assumindo responsabilidades domésticas e a criação dos filhos. Em sociedade eram severamente limitadas, com a privação do direito ao voto, participação na política e propriedade independente. A discriminação de gênero era amplamente aceita na sociedade, e o acesso à justiça era significativamente restrito.


“Cupido e Psiquê”, de Giuseppe Naria Crespi; 1707, (Uffizi Gallery)

“Psique Descobrindo o Cupido Adormecido”, de Antonio Bellucci; Escola Italiana, Veneziana, início do século XVIII

Na Grécia Antiga, mulheres também enfrentavam desafios e restrições comparáveis. Como o acesso limitado à educação, os casamentos frequentemente eram arranjados por motivos sociais e econômicos, com considerações de amor em segundo plano, semelhante à história de Psiquê. Enfrentavam também graves restrições em termos de liberdades fundamentais, incluindo a impossibilidade de votar, participar da política ou possuir propriedades de forma independente, enquanto a discriminação de gênero era amplamente tolerada e o acesso à justiça era altamente limitado. É notável que pouco mudou na experiência da vida cotidiana feminina entre um período e outro.

Essas condições se relacionam facilmente com a obra e a vida de Gabrielle de Villeneuve. A história de Bela representa a posição das mulheres na sociedade da época, muitas vezes relegadas a papéis tradicionais, como cuidadoras do lar. A busca de Bela por conhecimento e seu desejo por mais do que apenas uma vida doméstica ilustram o anseio por oportunidades e autonomia que muitas mulheres compartilhavam naquele período. Contudo, a história também oferece uma mensagem importante sobre o papel social da mulher e do casamento, servindo como metáfora para os casamentos arranjados, nos quais, à primeira vista, o marido, geralmente um homem mais velho, pode ser visto como uma criatura amedrontadora e repugnante. No entanto, com o tempo, a esposa pode se acostumar e seu marido pode se tornar objeto de amor e adoração.

A obra "A Bela e A Fera" também reflete traços da personalidade da autora, incluindo uma crítica ao casamento, que foi um de seus maiores traumas. Gabrielle teve um casamento complicado, principalmente devido a questões financeiras. Ela deu à luz uma filha durante esse casamento, cujo destino permanece desconhecido devido à falta de registros. Após a morte de seu marido, Gabrielle ficou viúva e sem recursos para se sustentar. Mudou-se para Paris e, somente após completar 40 anos de idade, iniciou sua carreira de escritora. Seu primeiro livro foi publicado quando ela tinha 49 anos, e há especulações de que o famoso dramaturgo da época, Crébillon, foi seu revisor e examinador. A relação entre Gabrielle-Suzanne de Villeneuve e Crébillon não está bem documentada, mas eles eventualmente se casaram e colaboraram mutuamente na escrita, com Gabrielle ajudando Crébillon na revisão de várias de suas obras submetidas à administração francesa de cultura.

A situação é espinhosa, mas se fosse possível resumir diria que "A Bela e A Fera" transcende sua superfície como um conto de fadas encantador para explorar questões profundas que ecoam tanto na França do século XVIII quanto na Grécia Antiga. A narrativa, enraizada na tradição oral e inspirada no mito grego de Eros e Psiquê, oferece um olhar penetrante sobre as limitações enfrentadas pelas mulheres, incluindo restrições educacionais, casamentos arranjados, a falta de direitos e de autonomia.

A história de Bela, que busca conhecimento e independência além de seu papel tradicional, reflete os anseios de muitas mulheres da época.

Importante dizer, também, que Essa análise nos mostra como o mito de Eros e Psiquê se relaciona com as experiências das mulheres na Grécia Antiga, refletindo restrições educacionais, casamentos arranjados e falta de direitos individuais. A rivalidade entre Psiquê, suas irmãs e Afrodite ilustra as dinâmicas sociais que limitavam as mulheres naquela época.

Inegavelmente, "A Bela e A Fera" é mais do que um simples conto de fadas, ou uma história que me encanta profundamente; é uma obra que captura as complexidades da vida das mulheres em diferentes épocas e culturas, capaz de nos lembrar da habilidade dos autores em entrelaçar a mitologia à realidade em narrativas cativantes. É um testemunho das lutas e triunfos das mulheres ao longo da história, transcendendo barreiras temporais e espaciais.



Conteúdo presente na edição de OUTUBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.

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