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O controle de narrativas e a censura: o caso de "O Retrato de Dorian Gray"

Gabriel Mello












No dia 10/07/2024 (quarta-feira) a Editora Antofágica, conhecida no mercado editorial pelas suas requintadas (re)edições de clássicos, anunciou o lançamento do título que há muito tempo era pedido pelo público: "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde.


A notícia, que era bastante esperada, na verdade não agradou boa parte do público, que criticou a decisão editorial da Antofágica em publicar o texto de 1891, que não só tem a versão mais conhecida, como também foi o primeiro a ser publicado em formato de livro e que também ficou conhecido pela sua alta censura na época.


E o que de imediato pareceu uma decisão editorial ao reeditar este clássico, na verdade apenas escrachou a existência da manifestação de poder através do controle narrativo.


Não é de hoje que se percebe como uma narrativa é poderosa. Muitas vezes, inclusive, eu já trouxe essa pauta aqui para a coluna. Mas, vendo toda a mobilização dos leitores depois do anúncio da nova edição de "O Retrato de Dorian Gray", percebi como ainda estamos pouco conscientes de algumas amarras, que insistem em nos prender e nos controlar. A Arte/Literatura, claro, não está isenta deste processo e, aproveitando este debate acalorado, decidi trazer algumas ponderações.


O livro narra a história de um jovem aristocrata londrino chamado Dorian Gray, cuja vida muda drasticamente após ter seu retrato pintado por um talentoso artista, Basil Hallward.


Encantado pela ideia de que sua beleza física poderia ser preservada enquanto o retrato envelhece em seu lugar, Dorian mergulha em uma vida de excessos e prazeres hedonistas, sem se preocupar com as consequências morais de seus atos.

Conforme o tempo passa, o retrato revela a verdadeira natureza de Dorian, registrando cada traço de decadência e depravação moral enquanto ele permanece jovem e aparentemente intocado pelo tempo.


Bastante polêmico, "O Retrato de Dorian Gray" chocou a sociedade na época da sua publicação. Isso porque a história, e não apenas o livro, surgiu em meio ao moralismo exacerbado da sociedade vitoriana. E, embora seja bastante complexo definir qual das múltiplas edições da história é a "correta", ou qual delas apresentou uma maior censura, podemos começar estabelecendo uma cronologia da sua concepção.


Foi em agosto de 1889 que o editor da revista Lippincott's Monthly Magazine encomendou novelas para autores, sendo um dele Oscar Wilde, que entregaria "O Retrato de Dorian Gray". Logo na primeira versão, ainda em manuscrito, o autor já autocensurava a sua obra ao perceber trechos e expressões que poderiam ser considerados polêmicos.


Em seguida, a obra foi datilografada. E, também nessa etapa, Wilde realiza algumas alterações, seja cortando ou alterando alguns elementos. Sem sequer ser levada à edição, Oscar Wilde já compreendia que aquela narrativa que ele vinha construindo já iria contra a narrativa hegemônica, aos padrões e aos costumes de sua época.


Na versão datilografada de "O Retrato de Dorian Gray", havia 13 capítulos. E ao ser publicada no periódico, a obra passou por incontáveis alterações, uma censura muito mais pesada do que a que Wilde vinha fazendo. E, somente após isso, a obra chegou ao público, em 1890. Um ano depois, Wilde voltou para a história para que ela fosse publicada no formato de livro.


O livro, lançado em 1891, foi o responsável por finalmente alcançar o público geral, tendo 20 capítulo, um personagem inédito e muito trechos que remetiam à homossexualidade apagados ou bastante diluídos. E mesmo depois das incontáveis censuras, o livro foi considerado polêmico, escandaloso e um ataque ao pudor. Quatro anos depois da publicação em livro de "O Retrato de Dorian Gray", Oscar Wilde foi julgado e sentenciado por obscenidade.


Em 2011, o acadêmico Nicholas Frankel trouxe à tona uma nova edição de "O Retrato de Dorian Gray", com a transcrição do datiloscrito enviado por Oscar Wilde à revista Lippincott. Essa edição, que ficou conhecida como a "edição não censurada", contém passagens que foram cortadas para a publicação na revista, mas não tem os acréscimos feitos por Wilde para a edição em livro de 1891.


E, como resultado de uma pesquisa de Nicholas Frankel, essa versão de Dorian Gray está protegida por direitos autorais.


No entanto, ao refletirmos sobre a trajetória de "O Retrato de Dorian Gray", não podemos deixar de notar como a narrativa, em suas diversas encarnações editoriais, reflete não apenas as escolhas artísticas de Oscar Wilde, bastante sinceras, mas também as pressões e censuras de um todo.


A polêmica em torno das edições de "O Retrato de Dorian Gray" ecoa em muitos debates contemporâneos sobre censura, representação e a responsabilidade dos editores na preservação da integridade artística. O que permanece claro é que mesmo as narrativas mais celebradas não escapam dos limites impostos pelo contexto histórico e cultural. A versão "não censurada" de Nicholas Frankel, por exemplo, poderia servir como uma janela para "o que poderia ter sido a visão original de Wilde". No entanto, esta versão da história também está limitada, pela proteção dos direitos autorais, a uma baixa distribuição.


É importante percebermos que, ao revisitar narrativas, estamos entrando num debate amplamente atravessado. Isto envolve as questões morais de quem narra, as questões morais de quem consume a narrativa, mas, sobretudo, o que o consenso define como "narrativas aptas à narração". Não são todas as histórias que são contadas, e nem sempre porque não há quem as conte, mas sim porque há alguns que não desejam que elas sejam contadas.


No fim, o esforço da Antofágica é glorioso. Mesmo presa à versão de 1891 de Dorian Gray, isto não foi impedimento para que o grupo de editores trabalhasse em múltiplos conteúdos para além daquele texto censurado. A edição conta com apresentação, posfácio e diversas notas de rodapé feitas por pesquisadores de Wilde e de sua obra. Além disso, desde o anúncio do lançamento, a editora vem divulgando em seu perfil do Instagram diversos conteúdos educativos sobre a obra e a cesura, além de prometer uma "edição definitiva"; não uma que trate daquela sem qualquer tipo de censura, mas uma que informa sobre cada palavra lida e ali colocada.



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3 תגובות


Volnei Freitas
Volnei Freitas
28 ביולי

Gabriel, outro texto elucidativo. Creio que os papéis do autor e do editor estão conectados em trama ao contexto histórico, social e mercadológico. Uma questão resultante é que dificilmente enxergamos os movimentos até o produto final. Daquele momento. Daquela narrativa dita válida. Decidir expor o fato descrevendo a batalha de narrativas foi incrível, parabéns!

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Carolina Brito
Carolina Brito
23 ביולי

Excelente texto! Suas ponderações são essenciais para uma compreensão mais profunda dos diferentes contextos percorridos pela obra, além de instigar nossa astúcia no papel de leitores a cada vez que uma nova (re)edição chega as nossas mãos. Ainda assim, acredito que parte do trabalho árduo dos editores (os bem intencionados, não os censores) ao longo do tempo foi o de manter nas entrelinhas a essência da narrativa, conduzindo-a de forma que explicitasse o não dito, para que ela sobrevivesse e alcançasse os tempos atuais, nos quais podemos discuti-la abertamente e refletir sobre todos esses processos socioculturais nos quais ela está envolta.

נערכה
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André Agueiro
André Agueiro
19 ביולי

Um dos meus romances favoritos da vida, triste pensar como a vida de Wilde foi encurtada e o que ele poderia ter produzido caso as leis morais da época não o tivessem condenado injustamente...

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