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Vilãs transfemininas e medos cisnormativos

Celina Falcão














O terror tem uma capacidade única de desafiar nossas ideias de normalidade e moralidade. O gênero me encanta de verdade quando expõe, de forma intencional ou não, as ansiedades sociais de um período, aquilo que a norma do momento percebe como ameaça. É nesse espaço que o terror revela sua verdadeira força política.


É por isso que quis falar hoje sobre três vilões de filmes de terror que representam uma transgressão que é completamente aterrorizante para a norma e os bons costumes até nos dias de hoje: a transgressão de gênero. Meu intuito é discutir como esses filmes retratam personagens transfemininas que, por acaso, também são assassinas inveteradas. 


Talvez a mais violenta representação de uma figura transfeminina que já vi esteja em Acampamento Sinistro (1983). No filme, a experiência de todas as crianças e adolescentes é profundamente determinada por seu gênero. A sexualidade é um tópico abordado à exaustão, o que é esperado, não só de um slasher dos anos 1980, mas de um filme em que os comportamentos adolescentes são centrais para o enredo. 


A protagonista Angela, introvertida e de aparência infantil, imediatamente se torna uma pária para as colegas. Mas o espectador tende a simpatizar com seu sofrimento, até, é claro, a chocante revelação de que Angela é a assassina que assola o acampamento e não a garotinha que conhecemos na primeira cena do filme, mas sim seu irmão Peter, travestido compulsoriamente pela tia (contribuindo para a longa tradição de figuras maternas que veiculam a transgeneridade de seus tutelados – vide Psicose, Medo em Cherry Falls, até O Massacre da Serra Elétrica - O Retorno). 


Nos parece apavorante que uma tutora obrigue uma criança a usar determinadas roupas, falar de um determinado jeito, adotar um determinado nome?


Acampamento Sinistro
Acampamento Sinistro (1983)

Mas em Acampamento Sinistro, a revelação mais terrível não é a do abuso perpetrado contra Angela e sim o corpo de Angela. Essa revelação é inexplicavelmente chocante. O terror está na ideia de que a performance de gênero pode ocultar um corpo que é percebido como destoante. A revelação da identidade do assassino aqui é diretamente conectada à revelação do corpo.


“[...] a narrativa é movida principalmente pela busca da descoberta da identidade do assassino, e o desenlace é dominado pela revelação dramática e surpreendente dessa identidade, mas, nesses filmes, o processo envolve duas revelações simultâneas: a da identidade do assassino, e do seu gênero.” (PHILLIPS, 2006, p. 85, tradução própria)

Embora produza uma análise precisa do que se passa em Acampamento Sinistro, Phillips na verdade se refere a O Silêncio dos Inocentes (1991).


A condição de Buffalo Bill é textualmente descrita como patologia. Clarice afirma que não há correlação estudada entre “transsexualismo” e violência, ao que Hannibal responde que o assassino não é “transsexual de verdade”, embora “ele ache que é”.


“Billy odeia sua própria identidade, percebe? E ele acha que isso o faz transsexual. Mas sua patologia é mil vezes mais selvagem e mais aterrorizante”


Há uma diferença efetiva entre ser transgênero e achar que o é? 


Caberia à psiquiatria “diagnosticar” a transgeneridade? Me parece que a tentativa de negar a transgeneridade de Buffalo Bill é menos uma tentativa de proteger a população trans da associação com a personagem e mais uma política de salvaguarda. Mas a verdade é que em Buffalo Bill estão contidas todas as ameaças que ainda hoje os setores conservadores da sociedade – e certas autoras de ficção especulativa – atribuem a mulheres trans: propensão à violência contra mulheres cis, predadorismo, motivação sexual.


Mas nem todos os filmes com vilãs trans codificadas evitam a todo custo dar nome aos bois. Alguns deles cantam sobre isso! Apesar de ser o filme mais antigo do qual vamos falar, o fato é que Rocky Horror (1975) é uma celebração queer. Talvez por isso aquilo que explorei como subtexto até agora apareça aqui como texto: o terror da cisheteronormatividade ao se deparar com a figura queer.


Se “horror”, como gênero, se referisse ao sentimento que é produzido no espectador, ninguém colocaria Rocky Horror Picture Show nesta categoria. Aqui, horror é o sentimento que as personagens e a narrativa despertam nos protagonistas, Brad e Janet, que aparecem como avatares de normalidade, caricaturas heterossexuais que estabelecem um contraponto para a natureza transgressora das demais personagens, a quem é concedido todo o carisma do filme. Seu temor, por consequência, também parece caricato. 


No caso de Dr. Frank-N-Furter, nossa vilã da vez, não há mistério ou surpresa sobre sua identidade de gênero ou sobre sua criminalidade. “Sweet Transvestite” soa como um hino de orgulho e sensualidade. Dr. Frank-N-Furter não é de forma alguma retratade com seriedade ou reverência, mas é inegavelmente amável em sua transgressão. É impossível não se deixar seduzir por Dr. Frank-N-Furter justamente porque, ao lado de figuras aborrecidas como Janet, Brad e Dr. Scott, sua presença é tremendamente intrigante. 


Não quero sugerir que o terror seja inerentemente transfóbico. Se buscarmos representações sensíveis de personagens transfemininas e da experiência trans no terror, temos bons exemplos, embora ainda poucos, como Eu Vi o Brilho da TV (2024) ou Clube da Mordida (2019). Tampouco quero desdenhar dos filmes mencionados – Silêncio dos Inocentes é um dos meus favoritos! – e da identificação que pode surgir, e de fato surge, para algumas pessoas queer, com esses personagens. Pelo contrário, espero que possamos ver como o terror é também uma ferramenta poderosa de análise social. O que espero transmitir é que é valiosíssimo pensarmos criticamente sobre quem são os vilões dos filmes que amamos, e quais narrativas eles nos contam sobre pessoas reais e medos fabricados. 





REFERÊNCIAS

PHILLIPS, J. Transgender on screen. Basingstoke, England: Palgrave Macmillan, 2006.

6 comentários


Mariana
13 de out.

Sou medrosa demais pra assistir filmes de terror, mas adoro ler análises assim. Essa foi uma das mais i teressantes que vi nos últimos tempos, fiquei até curiosa pra assistir os filmes (com alguém segurando minha mão talvez)

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Luna
11 de out.

Mesmo eu não tendo nenhum contato com os filmes abordados consegui entender como eles se articulam com a ideia do texto! Adorei a escrita ;)

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Gustavo B.
10 de out.

Texto incrível! Amei a articulação com o texto do Phillips sobre o “O Silêncio dos Inocentes”. Muito interessante que o terror, um gênero um tanto desprezado pela alta bolha do cinema, conseguiu já no passado trazer aspectos da existência queer em um momento onde não éramos bem visto pela sociedade.

Editado
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Lara novaes
10 de out.

Eu adorei o texto!! Nunca tinha refletido sobre filmes de terror com essa perspectiva social! E os exemplos foram muito interessantes!

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Valeria Cristiane
10 de out.

Nossa! Nunca pensei em filmes de terror sob esta perspectiva. Texto provocador e instigante.

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