UM ARTIGO por Gabriel Mello
RESUMO
Este artigo examina as redes de especulação que moldam as trocas humanas em diversas cosmologias, destacando o esforço especulativo ao conferir significado ao inexplicável. Ao longo do tempo, essas especulações evoluem e se concretizam, resultando em conceitos críveis. O texto explora o deslocamento entre "mito" e "folclore", evidenciando a marginalização das cosmologias dos povos originários, muitas vezes rotuladas como "folclore". Alerta para os perigos da deturpação das tradições, exemplificado pelo caso de Macunaíma, que desrespeita a tradição dos povos indígenas. Concluindo, destaca a importância de tratar com cuidado as cosmologias, rejeitar estereótipos e reconhecer o valor das narrativas ancestrais em diversas culturas.
INTRODUÇÃO
As redes de especulação concretizam as trocas humanas, nas mais diversas cosmologias. A maneira pela qual o Humano olha para o inexplicável e o significa, por si só, representa um esforço especulativo. Ainda assim, e sem sequer precisar entrar em uma abordagem histórica que enfatize o “progresso”, aos poucos essas significações, que partiram de uma natureza especulativa, vão se concretizando e ganham uma forma mais veemente, seja pela comprovação das teses ou através da enfatização de uma ideia, que acaba caindo no conceito daquilo que é perene, completamente crível.
Ainda assim, permeando as redes especulativas, é possível se deparar com algumas confluências, congruências e até mesmo discordâncias. Naturalmente, as cosmologias explicam tal movimento, e as abordagens que enfatizam a história e a cultura passam a amarrar com justificativas palpáveis toda essa diversidade de discordâncias.
Nesse contexto podemos perceber alguns movimentos, como já dito, sejam aqueles que aproximam, ou aqueles que divergem as histórias. É comum, por isso, perceber o mesmo conceito sendo trabalho com nomes diferentes, ou histórias sendo contadas através de pautas distantes. E quando me refiro a este fenômeno, não correlaciono àqueles sincretismos advindos de forças colonizadoras, mas sim daqueles casos, bastante curiosos, em que sociedades distantes, sem se conhecerem, parecem dizer o mesmo.
No entanto, há um movimento programático, esse sim enfatizado pela colonização, que busca criar um certo dissenso naquilo que, essencialmente, não é polarizado. É neste instante que busco localizar, e revisitar, o nosso conceito de “folclore” e de “mitologia”.
DESLOCAMENTO ENTRE ‘MITO’ E ‘FOLCLORE’
Inegavelmente, há uma tradição que permeia o conceito de “folclore”, sendo os seus estudos parte de uma corrente de pensamento mundial, cuja origem remonta à Europa da segunda metade do século XIX (CALVACANTI, 2002). Se tentar desfazer tais conceitos e tradições, é possível que seja reprendido. Aqui, portando, não busca-se revolucionar ou abominar a dicotomia apresentada, mas gerar reflexão sobre o sua origem e usualidade.
Ainda assim, sem muito esforço, quando escuta-se a palavra “mitologia”, automaticamente somos levados aos milénios passados; às “antigas civilizações”. Seja o impiedoso império romano, ou às histórias clássicas dos antigos gregos; podemos, talvez, cair nas histórias dos antigos impérios chineses, ou nas próprias tumbas dos antigos faraós. Seja para onde for levado, a palavra “mitologia” carrega consigo um triunfo respeitoso; uma ancestralidade superficial, uma que não pode ser acessada e que, por isso, gera um fascínio, partindo do mistério.
Em oposição, automaticamente quando escuta-se a palavra “folclore”, somos levados às cidades de interior. Acabamos em um casarão velho, podendo até mesmo sentir o cheiro da fogueira junina, ou no meio de uma mata, à noite, perdidos. Acabamos caindo no terror. O termo não nos leva ao triunfo, mas às trapaças, ao medo e ao castigo, mesmo que os ditos “mitos antigos” sejam tão macabros quanto aquilo que chamamos de “folclore”.
Este recorte é muito importante para que possamos refletir. Apenas nesta breve e bastante sucinta comparação, com poucos exemplos, é possível perceber a discrepância do tratamento entre aquilo que chamamos de “mito” com o que chamamos de “folclore”. Porém, na prática, os dois termos tratam do mesmo: histórias ancestrais que delatam uma certa cosmologia.
Se aprofundando ainda mais no debate, o real chega: quando falamos de folclore, estamos falando, em muitos casos, da cosmologia dos povos originários. Povos que ainda vivem, ainda constroem e, também, ainda partilham suas cosmologias. Neste sentido, é fácil que simplesmente sejam jogados, juntos com as suas histórias, para o mais perto possível da marginalização.
Suas narrativas sequer entram em debate, e quando entram são tidas como “folclore”, algo que foi completamente internalizado como uma manifestação inferior à “mitologia”. Ainda assim, mesmo tendo consciência das diversas violências e apagamentos, há um movimento de insistência, um de utilizar palavras diferentes para dizer o que é, no fim, o mesmo. Não por um movimento tradicional de deslocamento da história e da cultura, mas como ferramenta ativa para seguir uma narrativa especulativa de apagamentos, até hoje colonializante.
QUANDO AS TRADIÇÕES SÃO DETURPADAS:
O CASO DE “MACUNAÍMA”, DE MÁRIO DE ANDRADE
É neste cenário que muito se perde. Quando atribuímos o respeito aos mitos, mas não ao folclore, nos contentamos como algo banal, quase que exclusivo para fazer as crianças dormir, tornando-se muito mais fácil cair em erros e permeá-los por décadas. A partir disso que muito se perdeu ou foi suficientemente distorcido daquilo que, originalmente, intencionava ser contado.
Embora haja um esforço comunal em manter na sua originalidade os mitos, questionando a todo instante suas variações, nada disto ocorre com o que é taxado de “folclore”. Nas “lendas populares”, outra precária variação para o termo, é descartada toda e qualquer possibilidade de respeito intelectual e, assim, abre-se brechas para apropriações e distorções.
É nessa lógica de descuidado que nasce, no final dos anos 20, pelo Mário de Andrade, Macunaíma, em referência ao herói Makunaima (lê-se Makunáima), deslocado de Roraima por Theodor Koch-Grünberg. "Sem o etnólogo, não existiria Macunaíma: o herói sem nenhum caráter", afirma Cristino Wapichana.
Os povos indígenas têm bem definidos suas espiritualidades, seus criadores e suas histórias, e se orgulham de sua ancestralidade — diferentemente do Brasil português, que tem na sua origem violências contra os moradores destas terras (WAPICHANA, 2021).
O movimento de Mário de Andrade não só serve para delatar essa discrepância de tratamento com aquilo que é rotulado como “folclore”, mas mostra os desrespeitos que são advindos do ato. Tratar dos mitos, e nisso passo a incluir todas as produções ancestrais, não só aquilo que remete às tidas “grandes civilizações”, invoca o tratamento de uma cosmologia; de uma tradição que teve sua origem muito antes de habitarmos o nosso mundo. Trabalhar com cosmologias, ou apropriá-las, exige um cuidado enorme, uma vez que toda e qualquer produção a partir daquilo implicará nas vivências e crenças de uma sociedade.
Quando Mário de Andrade cria “Macunaíma”, ele descaracteriza toda uma tradição, o ridiculariza e, ainda, utiliza a obra para reforçar estereótipos violentos contra os povos indígenas. Os mitos trazem consigo histórias, vivências e potencialidades; são eles os motores para as especulações e para a firmação de uma rede especulativa proveitosa.
Por muito tempo foi utilizado como desculpa a noção ultrapassada de que o “folclore” vivia na oralidade, mas o mito não. A maioria das obras produzidas e que viriam a ser encaixadas na categoria de “mitologia” na verdade delatam uma gênese, também, na oralidade. A diferença, no entanto, é que com o tempo buscou-se um esforço em traduzi-las à literatura escrita. O mesmo não foi realizado com histórias tradicionais daquilo que não estava nas ditas “grandes civilizações”, e quando feito, foi completamente deturpado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos parâmetros das redes de especulação, onde as trocas humanas se entrelaçam, surge uma indagação provocativa: até que ponto podemos demarcar as fronteiras entre "mitologia" e "folclore"? Estamos imersos em um emaranhado de narrativas que, embora rotuladas de maneiras distintas, convergem em seu propósito essencial de transmitir cosmologias ancestrais.
Ao revisitar a dicotomia estabelecida, não buscamos subverter a tradição, mas sim lançar luz sobre as interseções muitas vezes negligenciadas. Automaticamente, a palavra "mitologia" nos transporta aos confins da antiguidade, como já levantado, evocando civilizações grandiosas; no entanto, ao mencionarmos "folclore", somos conduzidos aos recantos mais íntimos e marginais, porém às histórias que permeiam o cotidiano.
No entanto, essa distinção, embora aparente, não é uma barreira rígida. Ao aprofundarmos o debate, percebemos que o "folclore" muitas vezes é portador das cosmologias dos povos originários, narrativas vivas e pulsantes que merecem ser apreciadas sem os filtros depreciativos. Essas histórias, longe de serem relegadas à marginalização, são elos valiosos para compreender a diversidade de perspectivas dentro das redes especulativas. No folclore escandinavo, por exemplo, as narrativas de seres míticos, como os Norns que tecem o destino, ecoam conceitos similares encontrados em mitologias globalmente reconhecidas.
Essas narrativas folclóricas e mitológicas não devem ser reduzidas a meras histórias pitorescas; ao contrário, elas são fios condutores que ligam as experiências humanas de maneiras surpreendentes. Nas tradições africanas, ainda, aquilo que é tido como "folclore" incorpora cosmologias que exploram a conexão entre os vivos e os ancestrais, transmitindo sabedoria e valores culturais, que moldaram vivências e construíram poderosas narrativas na História Humana.
Diante desse panorama, é importante questionar algumas amarras, problematizando o surgimento de algumas dicotomias, em busca de transcender enraizamentos conceituais que, no fim, apenas segregam. Vale enfatizar, porém, a importância intelectual e política do conceito de "folclore", reconhecendo sua validação de pesquisa e o seu direito de manifestação. Ainda assim, buscar um esforço equitativo da sua conceituação, não o marginalizando com base no conceito, também ancestral, de "mitologia".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALCOFORADO, Doralice. Do folclore à cultura popular. Boitatá, v. 3, p. 176-179, 2008.
BENJAMIN, Roberto. Conceito de folclore. Projeto Folclore–Unicamp, São Paulo, p. 1-2, 2022. Disponível em: https://www.unicamp.br/folclore/material/extra_conceito.pdf
CAVALCANTI, Maria Laura. Entendendo o folclore. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/download/53422612/entendendo_o_folclore.pdf
LANGDON, Ester Jean. A fixação da narrativa: do mito para a poética de literatura oral. Horizontes antropológicos, v. 5, p. 13-36, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-71831999000300002
WAPICHANA, Cristino. "Mário de Andrade reforçou em Macunaíma o sentimento anti-indígena dos brasileiros". Quatro Cinco Um, 01 set. 2021. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/literatura-brasileira/o-heroi-sem-apreco. Acesso em: 24 dez. 2023.
Conteúdo presente na edição de JANEIRO DE 2024 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. A Revista Especular é um selo do GRUPO EDITORIAL LUMINAR
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