É quase inevitável, falando sobre filmes de terror, pensarmos em ambientes noturnos, paletas frias, fotografia escuras e sensações igualmente soturnas. Aliás, os momentos diurnos e de interações à luz acesa normalmente servem como alívio e possibilidade de respiro em meio à tensão e pesar apresentada no cinema do gênero.
Como essa lógica poderia se inverter em um filme de terror que se passa quase inteiramente durante o dia?
Foi extremamente surpreendente, em mim, as sensações despertadas em Midsommar - O Mal Não Espera a Noite, filme de 2019 do diretor Ari Aster - mesmo diretor de Hereditário (2018) e Beau is Afraid (2023) . A história gira em torno de Dani, uma jovem que, após perder, de forma trágica, sua família inteira, se ancora emocionalmente em seu namorado Christian. Até então, algo esperado já que ambos possuem um relacionamento.
O problema é que Christian não está exatamente no mesmo momento em que Dani, e, inclusive, havia acabado de marcar uma viagem com amigos para aproveitar o verão na Suécia. Coincidindo com a morte da família da namorada, ele não vê outra opção a não ser levar sua namorada junto com o grupo.
O local em questão se trata de uma vila de costumes pagãos, lugar onde Pelle, um dos amigos, nasceu e cresceu. Nessa vila, é celebrado o festival pagão “Midsommar”, festejo que celebra o auge do verão (aliás, o festival existe e é considerado feriado na Suécia. Obviamente, ele não tem nada de semelhante com a forma celebrativa do filme, que fique claro) e que representa um marco importante dentro dos costumes e ritualidades das pessoas do vilarejo.
O que ocorre é que, para os vilões, a festividade representa o fim de um ciclo e o início de outro. A renovação é um elemento essencial para entender a forma de pensar e viver dentro da cultura dos mesmos: a cada fase de vida é designado funções específicas e simbologias específicas. Por exemplo, logo nos primeiros dias de festividade, eles se deparam com uma cena chocante para os visitantes, mas já esperado pela vila: o casal de anciãos mais velhos do lugar realiza um auto sacrifício se atirando de um penhasco. É neste ponto que os horrores diurnos se mostram de forma mais material para Dani, ao mesmo tempo, fazendo-a sentir o medo da renovação e processo de autonomia para nossa protagonista.
Como eu disse, a maior parte do filme acontece durante o dia. É curioso, como neste ponto da obra, que a lógica comum do terror se subverta: os momentos de alívio acontecem durante à noite, pois toda vez que amanhece, é a certeza de uma nova celebração, podendo envolver: uso de entorpecentes, sacrifícios, empalhamento, traições e almoços celebrativos com direito à bebidas duvidosas (sem muitos spoilers por aqui). Pouco a pouco os amigos de Christian vão desaparecendo conforme os dias vão se passando, restando apenas Dani, Christian e Pelle, nascido na vila. Até o momento da catarse do filme, claro. Após isso, é até difícil afirmar que “sobrou” Dani, porque, apesar de suas várias perdas, ela com certeza se sente mais completa e suficiente ao final da trama.
Eu diria que a construção do terror em Midsommar se dá pelos detalhes. Está nas runas costuradas nas roupas de cada um dos amigos e com seus significados atrelados à jornada de cada um (por exemplo, na roupa de Dani há bordada uma runa “Raido” invertida, que, atrelada ao significado original da runa, podemos entender que ela possui uma jornada tortuosa e desagradável a enfrentar, mas que é necessária); Está na naturalidade que os vilões apresentam diante dos sacrifícios, rituais e outros costumes que, para os exteriores, são incompreensíveis; Está, também, nos detalhes da tapeçaria bordada à mão em que podemos desvendar parte da história e do desenvolvimento dos personagens; Está nas expressões de medo, angústia, e ao mesmo tempo catarse que a protagonista demonstra, às vezes de uma vez só. Está na silhueta da irmã morta de Dani, mesclada com as folhas e árvores na paisagem.
Ver Midsommar mudou muito minha visão em relação ao que realmente nos dá medo. Pois o que acontece no filme não são acontecimentos para dar um pulo de susto e depois acalmar o coração. São cenas que ficam ecoando no meu pensamento e refletindo cada vez em que penso sobre luto, relacionamentos, autonomia e completude. Definitivamente, uma obra que merece ser vista à luz do dia.
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