Para além de Omelas
- Nicolas Dobarro Cassemiro

- há 12 minutos
- 3 min de leitura

Em 1973, Ursula K. Le Guin apresentava ao mundo seu conto “The Ones Who Walked Away from Omelas” (Aqueles que foram embora de Omelas), o qual já discuti em uma coluna anterior — aqui. Essa história, parte conto e parte ensaio filosófico, tinha como dilema central a seguinte questão: Aceitar uma utopia construída no sofrimento total e absoluto de uma criança, ou rejeitá-la e simplesmente deixar a cidade, em direção a um lugar ainda mais indescritível.
Porém, essa pergunta é deixada em aberto; segundo a própria autora no posfácio, a história “não é uma resposta; é uma pergunta”. Omelas funciona como um espelho da nossa própria sociedade, cuja existência e sustento depende do sofrimento de milhões de pessoas.

Quarenta e cinco anos depois, a renomada autora N.K. Jemisin nos oferece uma resposta, na forma de seu conto intitulado “The Ones Who Stay and Fight” (Aqueles que ficam e lutam). Publicado como parte da antologia “How Long 'til Black Future Month?”, a obra é um diálogo direto com Le Guin.
Jemisin também apresenta uma utopia, a cidade de Um-Helat. Porém, ao contrário de Omelas, essa não é construída nas costas de uma única criança, mas sim numa espécie de “prevenção”, por meio de um grupo de pessoas que tem como trabalho cortar o mal pela raiz, monitorando e se livrando de pessoas que tragam a semente de noções de desigualdade, superioridade, ou outros males que possam corromper a felicidade/prosperidade da cidade e seus indivíduos.
A autora descreve um dos casos nos quais tais trabalhadores agem. Um homem, que havia quebrado as leis da cidade e foi exposto à ideia de que algumas pessoas são menos importantes que outras. Após o matarem, os trabalhadores são confrontados com uma criança, sua filha, que presenciou todo o acontecimento.
Então ela conta como a criança é resgatada pelos trabalhadores e, brincando com nossas expectativas (tendo Omelas em mente), se dirige ao leitor de maneira horrorizada perguntando se esperávamos mesmo que a história acabaria com o assassinato de uma criança.
Por meio de sua obra, a autora nos convida a questionar o porquê de sermos tão resistentes à ideia de que uma utopia, ou até simplesmente uma sociedade melhor, possa existir. Ao mesmo tempo, questiona também a falsa dicotomia apresentada por Le Guin, de um lado ficar e ignorar, do outro ir embora e abandonar.
Para a autora, a injustiça funciona como um vírus com potencial de se alastrar.
Portanto, não devemos simplesmente rejeitá-la e virar-lhe as costas, mas ficar e lutar. Deixar a cidade, como fazem alguns cidadãos de Omelas ao descobrirem sobre a criança abusada, é um ato individual. Um ato sem significado, pois a criança continua a sofrer e a cidade continua alicerçada nesse sofrimento.
Já o caminho proposto por Jemisin, ficar e lutar, implica em uma responsabilidade coletiva e direta na construção dessa utopia.
A utopia de Um-Helat não é um grande objetivo final a ser alcançado, mas sim um processo, uma luta constante a ser travada contra essas sementes que fomentam a injustiça.
Assim, se a pergunta de Le Guin era sobre o que fazer diante de uma utopia corrupta (com duas opções insatisfatórias), a resposta de Jemisin é uma interpelação sobre o que fazer para construir e sustentar uma sociedade verdadeiramente justa. O convite final não é para contemplar um horror distante, mas para assumir uma responsabilidade compartilhada no presente.
A obra de Jemisin nos desafia a abandonar o cinismo e a passividade, sugerindo que a utopia, mais que um lugar, é uma escolha diária de ação coletiva contra as sementes da desigualdade.





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