Em 1997, foi lançado no Japão o longa-metragem animado do renomado diretor Satoshi Kon: Perfect Blue. Baseado no romance homônimo de Yoshikazu Takeuchi, o enredo é um suspense psicológico onde acompanhamos Mima Kirigoe, uma idol parte de um grupo feminino de J-pop que decide deixar sua carreira na música para se dedicar à carreira de atriz. Porém, para se firmar no disputado mercado da atuação, Mima precisa abandonar a imagem angelical e inocente construída para sua persona como idol e assumir uma postura mais adulta e sexualizada.
Essa mudança desperta nos seus fãs desconfiança e ressentimento e, conforme avança em sua nova carreira, Mima se perde no limite entre a fantasia e a realidade, sem ter certeza de quem ela é realmente.
A princípio, essa parece uma história comum. No ocidente, nós acompanhamos várias estrelas passarem pela mudança de imagem diante dos olhos do público. A inocente Britney Spears cresceu ao ponto de se tornar a maior estrela pop do planeta e, então, despencou pelos mesmos motivos, diante de todos que faziam de sua dor alvo de seus holofotes. No Brasil, vimos a cantora Karol Conká abandonar seu trono de “rainha da sensatez” para se tornar a mulher com a maior rejeição da história de um Reality Show nacional; e, depois, se reerguer novamente.
O peso do estrelato é um enredo repetido dentro e fora da ficção, mas a queda desses grandes ícones sempre desperta curiosidade, pois, eles nunca caem da mesma forma. E, talvez por essa razão, Perfect Blue seja uma obra tão emblemática quando se fala em animações japonesas.
Mima nos é apresentada como uma garota dócil e muito passiva. É assim que ela é construída dentro de sua carreira como idol em um grupo feminino. Aqui, é preciso acrescentar um comportamento muito típico da cultura asiática: os ídolos devem suas vidas aos seus fãs. Devem se portar sempre de forma gentil, exemplar e solidária. Suas personalidades, de certa forma, são moldadas ao gosto do público e a menor falha pode destruir completamente suas carreiras.
O que conhecemos como “cancelamento” no ocidente é muito mais feroz do outro lado do mundo, onde as taxas de suicídio entre os jovens são altíssimas devido ao alto nível de exigências cobrado pela sociedade. Mima surge desse universo intolerante e temperamental. Afinal, a cultura dos fãs mexe diretamente com os sentimentos das pessoas.
Por essa razão, quando ela decide deixar seu grupo, Mima sofre com uma instabilidade emocional: enquanto tenta conseguir mais falas na produção onde ela está atuando, seus fãs continuam evocando a imagem da “Mima pop idol”, da qual ela tenta se desvencilhar. Como atriz, ela participa do enredo de uma série policial, enquanto “na vida real” cartas e ameaças de admiradores se misturam a um site chamado “O quarto de Mima”, criado por algum fã que narra seu dia-a-dia com uma precisão perturbadora ao mesmo tempo que cria eventos que nunca aconteceram; o que a deixa ainda mais assustada e confusa sobre sua própria vida.
Há uma oscilação constante entre as cenas atuadas por Mima como atriz e sua realidade, reforçada pelos desejos conflitantes de sua assessora Rumi, que quer a Mima pop idol de volta enquanto seu gerente, Tadokoro, insiste em mantê-la como a atriz até que seja reconhecida. Mima confessa para sua mãe que a carreira de idol a sufocava, mas, ao mesmo tempo, como atriz, precisa se submeter a experiências degradantes capazes de redefinir sua imagem para o público, como quando ela precisa fazer um ensaio nu.
Essas microviolências que a subjugam causam uma incerteza sobre a natureza de sua escolha. Sua insegurança aumenta quando o seu antigo grupo, CHAM!, agora com apenas duas idols, consegue alcançar o melhor número já conquistado nas paradas de sucesso e Mima se sente ainda mais incerta de sua imagem, já que, como atriz, sua popularidade está abalada.
Tudo fica ainda mais caótico quando Mima aceita participar de uma cena violenta de estupro criada por um roteirista para ela, com o intuito de testar seu desempenho como atriz. Uma parte dela se sente traída e Mima sofre uma forte ruptura de sua identidade estabelecida até aquele momento. Ela quer mostrar seu profissionalismo ao mesmo tempo que está esgotada após as gravações e tem uma crise de choro, escondida em seu apartamento.
Deste modo, começa a enxergar uma “outra Mima”, que representa sua identidade como idol, desejando regressar ao conforto de ter uma imagem limpa, ingênua e amada, enquanto luta consigo mesma para afirmar a satisfação do caminho que escolheu seguir, mesmo que o sentimento de culpa e arrependimento pela nova visão que as pessoas têm dela sejam os mais recorrentes.
Entre cenas de crimes, atentados reais, o descontentamento de Rumi com sua imagem, a hostilidade de seus fãs e um stalker que está disposto à puni-la por ser “uma farsa”, Mima se perde completamente entre o real e o imaginado e é atacada por sua versão do passado. Os “culpados” pela decadência moral de sua nova persona são assassinados, mas o roteiro nunca deixa explícito se os crimes são causados por Mima, por seu stalker fanático ou por sua assessora. O fato de lidar com um assassino na trama da série policial em que atua e na vida real, a deixa ainda mais deslocada da verdade.
Em uma espécie de confronto final, percebemos que Rumi é incapaz de abrir mão da imagem de inocência e pureza de Mima ao ponto de projetá-la em si mesma e acaba sendo diagnosticada com Transtorno Dissociativo de Identidade - algo que acontece à personagem de Mima no drama em que trabalha -, o que permite recair sobre ela todos os crimes que assistimos Mima cometer. Como última cena, vemos a Mima “verdadeira” se olhar em um espelho e dizer:
“Eu sou real”, com um semblante totalmente diferente da pessoa passiva e submissa que havíamos conhecido até então.
Perfect Blue abre espaço para dezenas de análises semióticas, que se estabelecem desde as cores em evidência na trama: azul e vermelho, com simbologias opostas na psicologia das cores, até as camadas mais profundas dentro da narrativa sobre a busca pelo eu, perda de identidade, dualidade e os vieses da loucura. A animação é uma inspiração assumida para Cisne Negro e Réquiem para um sonho, ambos filmes do diretor Darren Aronofsky.
Para esta colunista, Perfect Blue demonstra o quanto o esvaziamento de si mesmo para se moldar aos desejos alheios é capaz de levar alguém a se perder em sua própria performance do “eu”. Mima nunca foi ela mesma, seja como idol, seja como atriz. Parafraseando o sociólogo Richard Sennett, a personalidade tem por si só a peculiaridade da individualidade e independe de caráter. As ações de Mima quanto atriz dariam a ela a possibilidade de florescer sua espontaneidade, o que não era permitido como uma idol cujos passos eram milimetricamente calculados.
Por esta razão, é apenas quando ela decide se tornar atriz que o conflito com sua identidade ocorre. Mima, que até então estava sufocada como idol, também precisa seguir padrões comportamentais e criar uma linguagem visual de uma persona pública como atriz. Não há espaço para ser ela mesma.
Não há como dois corpos ocuparem o mesmo espaço, por isso o colapso. Mas que personalidade verdadeira seria essa, afinal? Para Sennett, o indivíduo cria máscaras e faz delas um “eu verdadeiro” até mesmo em sua intimidade.
Quando Mima perde a obrigação de performar suas personas públicas, encontramos uma mulher distante do que assistimos desde o início e passamos a nos questionar se ela seria capaz de tomar as decisões e atitudes que, aparentemente, havia tomado. Passamos o filme inteiro acompanhando Mima em mais uma de suas máscaras? E a persona que ela nos revela, ao final, seria mesmo o seu “eu verdadeiro”? Provavelmente não, já que nossos núcleos de personalidade não são completamente conhecidos nem por nós mesmos. Afinal, além de nossos princípios e valores pessoais, também somos construídos a partir da visão que as outras pessoas têm de nós. Por essa razão, Mima vaga entre o que ela seria para si mesma e o que representa para seus antigos fãs, seus agentes e seus novos haters.
A natureza da confusão entre o real e o imaginário transborda para além do filme. Mima viveu muito tempo como uma observadora de si mesma, cada vez menos autêntica à medida que se tornava mais famosa. Ela está se descobrindo, finalmente, livre da necessidade de agir de acordo com o que desejam dela? Ou será que Perfect Blue é apenas mais um papel representado por Mima Kirigoe?
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