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Personal Vivator: quando um alienígena resolve fazer um filme










O assunto “trabalho” não ocupa apenas o dia de quem vive dele, mas é tema de grande projeção dentro da FC, afinal, o que poderia render mais especulações que o uso e abuso da força de trabalho, daquilo que nos mantêm vivos – ou deveria – a preços muito altos?

Se as discussões mais atuais têm questionado quais empregos deixarão de existir por conta da Inteligência Artificial ou tudo o que é preciso fazer para “não ficar para trás”, talvez fosse melhor voltar alguns passos na história e considerar um outro ponto de vista que desloque a centralidade do nosso saber sobre o trabalho. E é também dessa descentralização que trata o curta-metragem de Sabrina Fidalgo, Personal Vivator (2014).



Cartaz do filme "Personal Vivator" | Fonte: AdoroCinema
Cartaz do filme "Personal Vivator" | Fonte: AdoroCinema

Rutger (Fabrício Boliveira) é um alienígena que chega à Terra para entender como vivem os seres humanos, e para se infiltrar entre os terráqueos ele se disfarça de um documentarista. E é com a câmera e conhecendo bem a relevância doentia de uma existência virtual para a sociedade moderna que ele vai desvendar nossa estranha forma de sobre(viver).


São inúmeras as camadas que o curta-metragem, como um belo representante nacional do afrofuturismo, consegue mencionar: o absurdo da vida virtual, a falácia da intelectualidade branca e o “desejo” do oprimido em se tornar opressor. Mas é no trabalho e na identificação de um contexto brasileiro onde uma classe média – geralmente branca – e seus empregados – geralmente negros, que o passado escravocrata ressoa. Rutger, o extraterrestre negro, identifica nos afrodescendentes da Terra algo em comum e que tem a ver com o que eles fazem para sobreviver.

 

São sobreviventes, são os mais pobres, são os mais fortes, uma babá de filha de mãe presente, o vendedor que vende vigores de sua existência, poderes para abrir suas portas, empregadas para limpar suas sujeiras. Sim! São eles! Vamos chamá-los de personal vivator’s!

 

Rutger os identifica logo após entrevistar Marineuza (Ana Flavia Cavancalti) e entender um pouco mais sobre o seu dia: ela dorme em uma cama improvisada no corredor do apartamento da patroa, ela limpa, cozinha e é a babá de uma menina. Marineuza é a empregada de Anna (Ana Chagas), uma mulher branca que está fazendo um doutorado sobre a comunidade que, como ela mesma diz, é “o futuro do nosso país”.  No encontro do trio, Rutger filme Anna em primeiro plano, mas é Marineuza, em segundo, quem realmente o interessa. Logo após essa sequência, Rutger passa a entender como as relações acontecem na casa. Enquanto o extraterrestre organiza seus pensamentos, são sete as fotografias de babás negras com crianças brancas que surgem na tela. Sem efeitos especiais (ponto altíssimo do filme), viajamos através do tempo, tropo comum às obras afrofuturistas que usualmente compreendem passado, presente e futuro como uma coisa só.


Rutger admira Marinalva | Fonte: Porta Curtas
Rutger admira Marinalva | Fonte: Porta Curtas

Na história do Brasil, como bem apontou Lélia Gonzalez (2020) em A mulher negra na sociedade brasileira, a identificação dos dois principais tipos de escravos – os de sustentação econômica e os de prestação de serviços –, revelava correspondências com a situação das mulheres negras: a trabalhadora do eito e a mucama. Enquanto a primeira trabalhava de sol a sol, subalimentada, mas capaz de estimular seus companheiros a fuga ou a revolta, a mucama garantia o bom andamento da casa-grande e seu trabalho envolvia uma série de afazeres – lavar, passar, cozinhar, costurar, limpar e amamentar –, verbos que Marineuza conhece bem!

Rutger converte Marineuza na protagonista de seu filme e Anna sobe ao morro armada para se vingar. A surpresa da história, contudo, não está na dupla de patroa e emprega que se unem para matar Rutger, mas no que acontece antes da chegada de Anna. Rutger descobre que Marineuza também possui uma babá – “também sô patroa” – afirma ela com orgulho. É Jurema (Brenda Oliveira), tratada de maneira bruta por Marineuza ao pedir para ir até a farmácia entregar o remédio para a avó, que desperta o interesse de Rutger.

Ainda que completamente diferentes, Marineuza e Anna se unem pela vingança. Rutger busca o que ele chama de uma “grande mulher”, aquela que cuida da casa, das crianças, de tudo, ideia elaborada a partir de uma outra leitura da vida dessas mulheres: elas são grandes porque fizeram tudo e fizeram mais, ainda que obrigadas a fazê-lo.



A revisitação do passado para compreender o presente é algo fundamental no afrofuturismo. Kênia Freitas, pesquisadora e professora especialista no gênero/movimento explica que a sensação de alienígena ou estrangeiro é familiar ao povo negro em vista do processo de escravidão, que reiterava, dentre tantas outras problemáticas, a dificuldade da comunicação. Contudo, a situação de não pertencimento quando apropriada pelo afrofuturismo, é capaz de criar outras formas de especulação.

Mas para além dessa revisitação, o filme não aponta para resoluções fáceis, na verdade, nada é resolvido e a rememoração do passado que segue ecoando em uma sociedade racista, é apenas uma das complexidades que rodeiam essas personagens. Rutger aparentemente volta a sua forma alienígena, já que o seu tempo na Terra acabou, mas quem sabe mais quantos outros e outras poderão ter acesso ao material que ele fizera aqui na Terra para entender um pouco melhor aquilo que segue bem na nossa cara, mas que insistimos em não enxergar.

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