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Prazer, sou Gilgamesh, aquele que o abismo viu

Julia Cadar











A história mais antiga do mundo faz parte da tradição fantástica


Registrada em pequenas tábuas de argila, sua origem remonta aos primórdios da civilização suméria e da escrita. Acredita-se que o conjunto mais famoso desses entalhes tenha sido escrito por volta do século VIII a.C. na  Suméria, a civilização mais antiga do sul da Mesopotâmia, onde atualmente fica o Iraque, e que ele seja o registro de uma tradição oral ainda mais longeva.  


Escrito em acádio, a Epopeia de Gilgamesh conta a lenda de um rei-deus que teria vivido há mais de quatro mil anos, e o selvagem Enkídu que, apesar de ter sido concebido para ser seu rival, acaba tornando-se amigo e companheiros de batalha do monarca. Juntos, eles derrotam Humbaba, o guardião da Floresta de Cedros, e o Touro do Céu enviado por Ishtar. Como punição, os deuses tiram a vida de Enkídu. Gilgamesh, aterrorizado com a própria mortalidade, parte em busca da vida eterna. 


Depois de uma longa jornada, na qual ele encontra o único sobrevivente do grande dilúvio, ele vai até às profundezas do mar para conseguir a planta que o faria imortal. No entanto, quando uma cobra rouba o fruto da sua missão e Gilgamesh é obrigado a aceitar seu fim, os deuses o relembram que a única maneira de perdurar é sendo lembrado. 


Para os amantes de ficção fantástica, não será difícil ver como a jornada deste herói é parecida com a de muitos outros que também conseguiram sua imortalidade através de suas histórias - mesmo que seus companheiros se chamem Samwise, ao invés de Enkídu, ou que suas Florestas de Cedros fossem, na verdade, uma planície deserta infestada de Vermes de Areia.  


Que os mitos, como o de Gilgamesh, são os precursores da Fantasia já é um fato consolidado entre os estudiosos e fãs do tema.  Há quem diga que a longevidade do gênero se deve à necessidade do homem de escapar das próprias circunstâncias e imaginar uma realidade diferente, mas acredito que o propósito da Fantasia seja justamente o contrário: evidenciar a universalidade da experiência humana. 


Seja na Mitologia das primeiras civilizações, na fantasia moderna ou na vida pessoal de cada um, essas histórias nos oferecem um local de protagonismo que não encontramos em outro lugar e permitem que o mundo se organize ao nosso redor, mesmo que temporariamente. Todas as batalhas e  deuses existem para que nós possamos interagir com eles. 


Por isso, quando li a nova tradução do épico por Jacyntho Lins Brandão, publicada em 2021 pela Editora Autêntica, já soube, logo na primeira frase, que a transformação de Gilgamesh seria também a de Júlia. Minha Urúk chama-se Belo Horizonte, e meu abismo já teve muitos nomes. Sei que “[d]o homem os dias são contados, tudo que ele faça é vento” e, mesmo assim, busco ser lembrada pelas minhas histórias, porque “[a] morte temo e a estepe vago”

Por mais excepcional que o rei-deus tenha sido, foi sua humanidade que o tornou imortal e é a capacidade de identificação que faz da fantasia tão permanente. 


Então repito: Prazer, sou Gilgamesh, e você também.


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3 Comments


Bonito texto!

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Prazer. Na leitura, pela escrita culta porém fluída; na percepção da fantasia enquanto caminho e não fuga da realidade; em descobrir de outra forma, literária e fantástica, que em nossa humanidade reside o não-morrer. Show.

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"[...] a única maneira de perdurar é sendo lembrado", muito bom isso daqui

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