Era uma vez.
Três palavras mágicas que nos abrem portas a mundos onde o extraordinário e o sombrio coexistem, e onde, com muita frequência, nos esbarramos com a presença enigmática do Lobo. Este personagem, que se apresenta através de muitas facetas, está completamente canonizado na tradição dos Contos de Fadas, presente nas mais famosas das histórias infantis.
O Lobo é um antagonista clássico em histórias como "Chapeuzinho Vermelho", "Os Três Porquinhos" e "Mogli". Em cada uma delas, ele assume o papel de predador ou de um “bicho-papão” nas sombras, ameaçando aqueles que ousam sair do caminho seguro, ou desviar da moral ocidental. Na Europa medieval, onde o desconhecido e o inominável eram vistos com temor, o Lobo impregnava o imaginário popular e personificava todos os anseios que habitavam fora dos muros das aldeias. Ele era o reflexo da natureza indomada e dos instintos humanos, um alerta contra a imprudência de um mundo ainda visto como "vasto e perigoso".
Contudo, o Lobo se constrói muito além de um vilão. Em muitos contos, ele é transposto como um agente de transformação. Para Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, o Lobo representa o seu rito de passagem entre a inocência e a astúcia; ele "ensina" a jovem a desconfiar das aparências, a entender os perigos do mundo e, mais ainda, a amadurecer. Em outras histórias ele também funciona como esse guia "brutal, medonho e silencioso", mas ainda como um mestre que prepara os protagonistas para os desafios da vida fora dos caminhos familiares. Esse arquétipo, claro, está completamente relacionado à própria natureza, e ao papel social, dos Contos de Fadas, sendo o encontro com o Lobo um verdadeiro rito de passagem.
Os contos se caracterizam por serem uma narrativa cujos personagens, heróis e/ou heroínas, enfrentam grandes desafios para, no final, triunfarem sobre o mal. Permeados por magias e encantamentos, animais falantes, fadas madrinhas, reis e rainhas, ogros, lobos e bruxas personificam o bem e o mal. No conto de fadas, tapetes voam, galinhas põem ovos de ouro, pés de feijão crescem até o céu, enfim, traz-se à tona o inverossímil, e é essa magia que instiga a mente humana (SCHNEIDER)
Nas culturas nórdicas e em várias outras mitologias, o Lobo tem um significado mais profundo, que vai além da dicotomia, aparentemente rasa, entre o bem e o mal. Na tradição nórdica, lobos como Fenrir, Sköll e Hati são, ao mesmo tempo, presságios de destruição e símbolos de força e liberdade. Em culturas indígenas americanas, o Lobo é muitas vezes reverenciado como um espírito totêmico e guardião, um ser que guia, protege e ensina. Ele representa lealdade e independência, uma conexão que é instintiva e autêntica.
Na literatura moderna e em adaptações contemporâneas, o Lobo ganha ainda mais complexidade. Ele pode aparecer como protetor ou como um aliado improvável, refletindo um entendimento mais complexo da natureza do herói, como é no caso de "A Lenda da Caixa das Almas", livro infantojuvenil de Paola Siviero. Nestes casos, em vez de ser apenas uma ameaça, ele simboliza a reconciliação com nossos próprios instintos e uma aceitação das forças incontroláveis que habitam nosso interior. E nessa reinterpretação permitimos que o Lobo seja visto como um próprio reflexo da luta humana pela autossuficiência, aceitação social e liberdade em um mundo cada vez mais domesticado.
Essa reinvenção do Lobo, dos Contos de Fadas às visões contemporâneas, é um reflexo do que, muitas vezes, nós mesmos enfrentamos: a dualidade entre o que nos é familiar e o desconhecido dentro de nós. O Lobo por si é uma figura tão completa que pode ser lido até mesmo pela psicanálise, se assemelhando ao conceito de "sombra" de Jung, ou seja, aquela parte de nós que reprimimos, mas que precisa ser integrada para que possamos nos conhecer e viver de forma plena. Protagonista inominável nas principais histórias dos Contos de Fadas, que assume o papel de vilão e de mentor, o Lobo parece nos acompanhar para além das florestas desconhecidas. Muitas vezes simbolizando o medo nas ficções fantásticas, ainda assim, é aquele que tende a nos acolher. Ao mesmo tempo em que nos assombra, o Lobo nos lembra das partes incontroláveis de nossa natureza — nossos impulsos, desejos e medos primordiais que não se deixam domar. E você, já teve medo do Lobo Mau, ou aprendeu a abraçar o seu?
Comentários