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Realismo Fantástico: o Belo Reino da América Latina

Volnei Freitas









Como uma lente mágica a observar o cotidiano ressignificado, o realismo fantástico surgiu enquanto vertente literária no século passado. 


Diferentemente da fantasia tradicional, que transporta o leitor a mundos imaginários, ao se ancorar no cotidiano revela o extraordinário que permeia o ordinário. Remonta às primeiras décadas do século passado, ganhando força e raízes nas narrativas de autores como o metamorfoseado tcheco Franz Kafka e o argentino Jorge Luis Borges, mestre do insólito. 

Nas mãos de escritores latino-americanos, o gênero encontrou seu verdadeiro esplendor, transformando-se em um espelho para as complexidades culturais e históricas do continente nas penas de Gabriel García Márquez, autor de Cem Anos de Solidão, Isabel Allende, autora de A Casa dos Espíritos, entre outros. 


A conexão entre o realismo fantástico e a fantasia é mais profunda do que aparenta. Enquanto a fantasia tradicional, em especial a moldada por Tolkien e derivações, constrói mundos autossuficientes e regidos por leis próprias manifestadas por meio de sua coerência interna, o realismo fantástico subverte as regras do nosso mundo, ponderando o insólito como parte inseparável da realidade. 


Contudo, o que Tolkien denominou como “Belo Reino" – a capacidade da fantasia de nos reconectar a algo primordialmente belo e pleno – também está presente no realismo fantástico, porém, de forma distinta. Aqui, ele emerge em cenários onde o mágico é intrinsecamente humano, como em uma aldeia esquecida por Deus onde gerações coexistem com o peso da história e a dança dos mitos. O Belo Reino latino-americano não precisa ser criado, pois já existe entre florestas, vilas e corações que batem ao som de lendas ancestrais.


A literatura latino-americana despontou no cenário mundial ao abraçar essa abordagem única. Movimentos como o Boom Latino-Americano levaram ao reconhecimento global dessas obras que transitavam entre o real e o fantástico. 


Mas como o gênero levou a produção literária latino-americana ao destaque internacional?

Revolucionando a maneira como o mundo passou a enxergar a região: deixando de ser uma paisagem exótica a ser desvendada para um território literário pulsante, pleno de histórias que em sua complexidade unem tradição, resistência e imaginação. 


"Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez, marco inicial do Boom, ainda figura como o exemplo mais emblemático do gênero, transportando os leitores para a aldeia de Macondo. Lançado em 1967, tornou-se também marco literário mundial, não apenas por sua narrativa envolvente, como pela maneira como o autor teceu, em trama única, do épico ao cotidiano. 


A obra narra a saga da família Buendía na fictícia aldeia, apresentando personagens memoráveis e eventos que desafiam a lógica convencional: chuvas de flores, bebês com rabos de porco, borboletas que seguem um homem e pragas de insônia coexistem com emoções humanas universais, como o amor, a solidão e a busca por sentido. Seu impacto foi imediato e duradouro: traduzido para dezenas de idiomas, a obra consagrou o autor como um dos maiores nomes da literatura e introduziu milhões de leitores ao realismo fantástico.


O gênero distingue-se e dialoga tanto com a fantasia quanto com o realismo, integrando o extraordinário ao ordinário de maneira fluida, tratando eventos inexplicáveis como componentes naturais da narrativa. Entre seus principais itens estilísticos estão o uso de uma linguagem poética e evocativa, a sobreposição de tempos históricos e mitológicos, e a construção de cenários onde o contexto social, político e cultural é tão importante quanto os personagens. 


As histórias frequentemente dialogam com as raízes folclóricas e as memórias coletivas de um povo, destacando-se pela ambiguidade e pela coexistência do real e do fantástico. O realismo fantástico convida o leitor a questionar os limites da realidade e da imaginação, oferecendo uma visão caleidoscópica e profundamente humana do mundo.


Ao se destacar como essa ponte entre o universal e o particular, suas narrativas dialogam com os grandes mitos da humanidade ao mesmo tempo em que reivindicam o espaço das culturas locais, frequentemente marginalizadas. Na fantasia e no realismo fantástico, a própria existência é reimaginada, o impossível torna-se inevitável. No contexto latino-americano, o gênero encontrou seu tom mais arrebatador e, paradoxalmente, mais íntimo. A latinidade tornou o Belo Reino tangível.


Torna-se impossível falar do realismo fantástico sem antecipar o que se descortina no horizonte: a aguardada minissérie “Cem Anos de Solidão”, produzida pela Netflix, dividida em duas partes de oito episódios, que estreará em 11 de dezembro próximo. Dica: já coloque na agenda.


A adaptação da obra-prima de García Márquez promete trazer novas nuances ao texto original, que já recebem apoios e críticas desde o lançamento do trailer, além de apresentar Macondo a novas gerações e ao esplendor que reside em sua sentença inicial “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

Em tempo! O livro será foco de alguma futura coluna, onde abordarei a transposição dos encantos da obra para as telas e, quem sabe, o possível impacto dessa produção na revitalização do gênero em pleno século XXI.



Referência bibliográfica:

García Márquez, Gabriel, 1928–2014. Cem anos de solidão/ Gabriel García Márquez; tradução de Eric Nepomuceno - 123 ed.- Rio de Janeiro: Record, 2023.

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