Depois da estreia da série Junji Ito: Histórias macabras do Japão na Netflix, alguns de seus personagens mais famosos alcançaram um público novo, que talvez nunca tenha ouvido falar no mangaká (palavra usada para se referir a um autor de mangás) ou em seus mangás de terror. Dentro do mundo dos mangás, Junji Ito é conhecido como o mestre do terror e suas histórias são cativantes e tenebrosas na mesma proporção. No episódio 9 da série, narra um dos contos de sua personagem mais famosa: Tomie. Além disso, a personagem também foi seu primeiro trabalho e conta com mais de 700 páginas dedicadas aos seus contos de terror que foram publicados no Japão entre 1987 e 2000. No Brasil, as obras foram publicadas pela Editora Pipoca e Nanquim em dois volumes, ambas em 2021. Ao redor do mundo, Tomie virou uma representação da figura feminina dos mangás de terror, em todas as suas nuances, proporcionando muitas reflexões.
Tomie Kawakami é uma garota incomum, e ninguém sabe quem ela é ou o que ela é. O mistério sobre quem seria essa criatura roda ao longo de toda a leitura e não chega a nenhuma conclusão, mas uma coisa é certa, seu rosto fascinante esconde um mal terrível. Ninguém sabe porque todos os homens que se apaixonam por ela tem a necessidade visceral de matá-la, e também não entendem como mesmo sendo morta inúmeras vezes, ela continua viva, como se fosse uma entidade imortal. Essa história que gira em torno das mortes e da loucura que Tomie causa por onde passa pode ser usada para refletir sobre a problemática da violência de gênero, afinal a primeira morte de Tomie é um “acidente” entre ela e o namorado que supostamente descobre uma traição e em seguida a personagem é morta brutalmente, já nos primeiros capítulos conseguimos entender como Tomie é vítima dessa violência explícita, e os sentimentos ambíguos sobre essa personagem começam.
Depois de “ressuscitar” ela volta com uma sede de vingança forte e a partir desse momento é retratada como uma maldição. A história usa dessa imagem quase monstruosa de Tomie, em relação a esses homens que a perseguem tentados pela vontade de matar-lá e até de tirar a própria vida, que aparentemente foram levados pelo tormento e a angustia que Tomie causa em suas vidas, em uma narrativa violenta e sanguinolenta usada justamente para levar a reflexão sobre assuntos sérios como o feminicídio, pedofilia e relacionamento abusivo, já que suas mortes envolve sempre histórias de obcessão, violência, perseguição, entre outros. Apesar disso, a história não foca nos homens que olham para ela como um objeto e sim na própria Tomie, em suas escolhas, mortes, renascimentos, fases, mistérios, vinganças e em toda sua maldade, construindo uma personagem principal forte e trazendo o um protagonismo feminino importante dentro desse mangá de terror. A partir disso, penso em como essa figura ao mesmo tempo que representa uma monstruosidade feminina, quase como uma personificação do mal, também é a figura central de histórias em que seu corpo e sua vida é violentada, mostrando a sociedade patriarcal e uma questão de gênero como relação de poder.
Pensando nessa personagem complexa, lembrei dos escritos da pesquisadora australiana Barbara Creed, que reflete em seu livro The Monstrous-feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis, sobre o corpo feminino monstruoso, assim como ela, outras teóricas já se debruçaram neste tema, principalmente pensando em personagens icônicas do cinema e da literatura. A autora Morgana Becker escreve em seu trabalho intitulado FIGURAÇÕES DE MONSTRUOSIDADE EM TOMIE, DE JUNJI ITO, o sentimento de muitos dos leitores dessa obra:
Ao longo dos contos acompanhamos os inúmeros retornos da protagonista à vida, tão bela e bonita quanto antes, tornando qualquer um que entre em contato com alguma de suas formas invariavelmente insano. Isso faz de Tomie uma figura que divide o leitor. Ao mesmo tempo em que pode causar repulsa pelo modo como ela entra na vida das pessoas e as enlouquece, também somos pegos torcendo por ela, pelo seu renascimento e vingança, apesar de sua grotesca existência que nunca encontra paz. (Becker, 2023, p. 19)
Seria Tomie uma figura feminina do mal ou uma denuncia ao que acontece às mulheres? Diferente de outras histórias de terror onde a personagem feminina por vezes é frágil e indefesa ou sexualizada sem necessidade, nas histórias de Tomie o encanto que ela “provoca” nos homens caminha para o lado oposto da hipersexualização, já que reflete sentimentos e situações violentas que infelizmente muitas mulheres já viveram ou podem se identificar, como assédio e relacionamentos tóxicos. Outro aspecto é Tomie ser a protagonista, sendo uma figura forte e real, que é tomada pelo sentimento de vingança depois de sofrer. Ao meu ver, a personagem e as histórias contadas sobre ela se tornaram tão populares por mostrar essa figura feminina de terror que foge dos estereótipos e não pode ser encaixada como boa ou ruim, essa dualidade é o que faz de Tomie uma representação importante dentro do terror.
Vale a pena conhecer os contos de Tomie e um pouco mais desse universo maravilhoso de terror e assombro que o mestre Junji Ito desenha e escreve em seus mangás.
Referências:
BECKER, Morgana dos Santos. FIGURAÇÕES DE MONSTRUOSIDADE EM TOMIE, DE JUNJI ITO. Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado ao Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2023.
CREED, Barbara. The Monstrous-Feminine: film, feminism, psychoanalysis. London: Routledge, 1993.
ITO, Junji. Tomie Vol. 1. São Paulo: Pipoca e Nanquim, 2021.
ITO, Junji. Tomie Vol. 2. São Paulo: Pipoca e Nanquim, 2021.
Excelente texto! Tomie é uma representação muito significativa da mulher na sociedade. Dá pra extrair discussões muito profundas dessa obra. Me fez refletir bastante.
Muito bom!!! Tá aí um universo que eu preciso conhecer, com uma interpretação dessa vou ter que ir atrás <3