Cyclonopedia, horror geológico e os arquivos do trauma da Terra
- Rodrigo Fernandez

- 5 de set.
- 4 min de leitura


A ficção de horror costuma ser particularmente habilidosa em lidar com duas coisas que sempre me interessaram muito: o espaço e o arquivo.
Exemplo batido, mas não custa notar como em grande parte do cânone lovecraftiano – e, claro, em toda a tradição de subsequentes apropriações – existe, primeiro, um cuidado bastante minucioso com descrições geográficas e arquitetônicas e, segundo, uma recorrência de temáticas envolvendo registros, tomos, escrituras, artefatos, relíquias, tesouros etc.
É curioso, inclusive, como esses dois dispositivos parecem funcionar em favor do horror de maneiras diametralmente opostas. Enquanto o espaço age sobre o nosso corpo graças à construção de certas atmosferas e ambientes cujos efeitos dificilmente conseguimos explicar com termos menos elusivos do que “tom”, “humor” ou “vibe”, o horror de arquivo brinca com o que há de perturbador naquilo que costuma ser matéria fria da razão: o código – escritas criptografadas, diários, cartas, documentos, fitas magnéticas, registros digitais.
Além de ambos servirem como boas metáforas das preocupações que atravessam ficcionistas de todos os tipos, este último mecanismo tem ainda um apelo meio existencial com aquilo que há de compartilhado entre quase qualquer nerdice: o colecionismo. Não na versão commodificada, das camisetas de banda e bonecos cabeçudos, mas no ímpeto de catalogar coisas, inventariar objetos, criar grimórios, produzir enciclopédias, mapas e dicionários a respeito de tópicos tão obscuros quanto irrelevantes. Nada disso, claro, é exclusividade da ficção dita especulativa, mas o horror fez tanta festa com a tradição do found footage que tomou o termo para si, ofuscando o uso que outros gêneros fazem desse tipo de técnica.
É um pouco em relação a isso que, já há uns três anos, um livro orbita minha cabeça: Cyclonopedia, do iraniano Reza Negarestani. A contracapa da edição estadunidense o define como “ao mesmo tempo uma ficção de horror, um trabalho de teologia especulativa, um atlas de demonologia, um samizdat político e um grimório filosófico”. Apesar do tom marketeiro e um tanto espalhafatoso, a descrição não é injusta.
Cyclonopedia, antes de ser um título publicado em 2008 pela editora re.press, é um manuscrito encontrado no quarto de um hotel em que se hospedava uma artista em viagem para Istambul – ao menos, claro, é do que tentam nos convencer as páginas de preâmbulo ao livro. Logo percebemos que trata-se, além de um livro “found footage", de um jogo de espelhos numa cadeia de molduras mais ou menos metaficcionais. Há um constante estado de indiscernibilidade entre o que é documento, relato, ciência, filosofia, ocultismo ou poesia. É tudo ficção – e por isso mesmo talvez seja tudo verdade. Negarestani é autor, narrador e personagem, se dissolvendo nesse lusco-fusco a ponto de inspirar boatos conspiratórios a respeito do escritor ser, na verdade, um heterônimo de outras pessoas que circulavam à época na mesma blogosfera.
Ler o manuscrito nos atira num redemoinho.
Além de transformar o tropo do arquivo encontrado em dispositivo formal, o livro redimensiona o apreço por detalhadas descrições do espaço geográfico e arquitetônico na direção de um espaço-tempo geológico. O inexplicável desconhecido não é aquilo que se esconde atrás das linhas que traçamos na superfície, mas o que habita as entranhas da própria Terra. O horror ancestral é estratigrafado. É daí que surge o elemento temático que atravessa todo o texto: o petróleo.
Ao longo das últimas décadas, as assim chamadas ciências humanas têm se colocado em numerosas disputas a respeito das formas de lidar com os problemas dos nossos tempos. Em uma redução grosseira, uma preocupação comum a diferentes posicionamentos é a de aplainar – ou ao menos colocar em perspectiva – nossas relações com outras formas de existência: descentrando o humano, passamos a enxergar pares no restante do reino animal, mas também em plantas, fungos, bactérias, fósseis e minérios.
Talvez mais decisivas do que os tratados teóricos a respeito disso sejam justamente as narrativas que produzimos quando sintonizados com esse leque de problemas. Conferindo pleno protagonismo e capacidade de agência aos objetos, escrevendo ao lado do petróleo e atestando seu poder tentacular, Cyclonopedia cria um inédito estudo em “geotraumática”: a disciplina fabulada que seria responsável por reinterpretar toda a história do planeta como uma série de traumas.
O livro joga, do começo ao fim, com uma lista enciclopédica de intertextualidades. Uma das mais evidentes – e que aqui nos interessa em especial – é a torção que faz do horror de alteridade lovecraftiano. O medo do Outro e do Fora, lá como expressão máxima do racismo e do colonialismo que normalmente encontra seu clímax na perda de sanidade, aqui é conjugado como uma difusa tensão causada pela espreita de uma força telúrica que conduz os destinos geopolíticos da humanidade. O manuscrito se torna um receptáculo da inteligência do petróleo, cujas dimensões reais não conseguimos conceber.
Somos assombrados pela insistência de categorias que o projeto da modernidade tanto insistiu em demarcar: sujeito-objeto, natureza-cultura, mente-corpo; agora, tudo se dissolve num caldeirão de desaparecimentos e conflitos distribuídos ao longo da geohistória do Oriente Médio e escritos, literalmente, em pedra. Diante da temporalidade profunda do planeta, nossa própria finitude ganha contornos ainda mais agudos. Confrontados com a extinção, devemos contar histórias? Quais? Como? Não existe saída fácil. Talvez sequer exista saída e o caminho seja mesmo por dentro, ficando com os impasses.
O que essa curiosa forma de “horror geológico” parece captar, em última instância, é o sinal de um tempo que nos impele na direção de criar coisas cujo coeficiente humano é sempre contaminado por outras forças de escrita. Alguns textos do próprio Lovecraft, como A cor que caiu do espaço (1927), e parte do cinema de Herzog também poderiam ser colocados nesse balaio.
Cyclonopedia dobra a aposta e reescreve a metafísica do horror cósmico na materialidade ctônica do deserto.
Pela via da inquietude, do nervosismo, da confusão e de um impulso obsessivo, verborragicamente colecionista, o texto nos força a repensar as relações que cultivamos com os mundos e as temporalidades não-humanas que nos cercam – e nos controlam.





Rodrigo, eis um texto repleto de fôlego e surpresas: nas referências, na linguagem, na metanálise.
Adorei estilo, indicação e reflexões, descritas, como Lovecraft e found footage, e implícitas, como a crítica velada à visão antropocêntrica de mundo. Parabéns! 👏👏👏