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A eternidade e o ritmo lento

Tiago Marinho
















Podemos dizer que há um tipo de calma que não é representada pela ausência, mas sim pela presença. Ele se instala quando ouvimos o barulho da chuva atingindo uma casa, ou das folhas das árvores movidas pelo vento. É nesse espaço que a música lo-fi costuma habitar, entre batidas suaves, ruídos de fundo e melodias que não exigem atenção, mas oferecem companhia.

 

Frieren
Imagem de divulgação do anime "Frieren". (Imagem/Reprodução: Madhouse)

O lo-fi, abreviação de low fidelity (ou baixa fidelidade), é um gênero musical que se parece mais com uma espécie de paisagem sonora imperfeita, onde estalos de vinil, ruídos ambientes e batidas suaves compõe um cenário de acolhimento. Seus sons não são limpos nem polidos, mas é justamente nessa imperfeição que reside seu encanto, criando um espaço íntimo, quase meditativo. É quase uma trilha sonora para o silêncio, para o pensamento vagaroso, para o reencontro com a paz interior em meio ao ruído constante da vida moderna, um refúgio para quem precisa pensar, sentir ou simplesmente existir, muito usado por aqueles que têm dificuldade de concentração em seu trabalho ou estudo.

 

O trabalho recente de Kanehito Yamada (escrita) e Tsukasa Abe (desenhos) denominado “Frieren e a Jornada para o Além” me provocou uma sensação muito semelhante às alcançadas pelas características do estilo musical descrito acima, desde seu primeiro capítulo.

 

Frieren
Pôster de "Frieren". (Imagem/Reprodução: Madhouse)

Frieren é uma obra de fantasia que conta a história de uma elfa praticamente imortal que, por conta dessa característica, acaba enxergando a passagem do tempo de forma totalmente diferente dos humanos, capazes de viver apenas algumas décadas. Sem entregar muito da história, pois ainda é um trabalho recente, vamos dizer que, para nossa protagonista, passar “apenas” 10 anos na companhia de um grupo de pessoas não é tempo suficiente para conhecê-los, e passar 15 anos buscando uma planta em um lugar ermo é uma tarefa razoável.

 

Ela emana uma calma e deliberação diante dos desafios, até mesmo de combates mortais, que representam uma melancolia de alguém que viveu milhares de anos e que ainda viverá outros milhares e, por conta disso, tem dificuldades em enxergar os pequenos gestos e momentos ao seu redor. Isso também transforma suas ações em atividades calmas, tranquilas, executadas com esmero e tempo, em busca de uma qualidade definitiva, ainda que possam ocorrer diante de alguma urgência.

 

A tranquilidade de saber como agir porque suas ações são deliberadas e retiradas de sua avaliação íntima e profunda advinda de suas contemplações prévias e recentes, ainda que vinda de momentos difíceis, de lugares de arrependimento e de constantes mágoas e imperfeições de sua história, que ela abraça no lugar de abandonar.

 

Nossa protagonista inicia a história como uma pessoa solitária. Porém, sua solidão é fértil, pois ela observa, aprende e sente, e em comparação, o lo-fi é muitas vezes a trilha sonora de quem estuda, escreve e cria.

 

A solidão de ambos os lados não é um indicativo negativo de ausência, mas sim representada como uma presença profunda que somos capazes de alcançar com nós mesmos, uma serenidade que nos leva a recantos profundos de nossas mentes, onde podemos encontrar forças e respostas pela calma avaliação introspectiva ou pela companhia serena de seus próprios pensamentos. Não como uma efetiva defesa dessa ausência ou presença, mas como um efeito de sua existência, uma consequência de sua adoção.

 

Após os eventos do início da série, a jornada de nossa protagonista se transforma em uma busca pela melhor compreensão desses pequenos momentos e das ações das pessoas à sua volta, usando tanto memórias antigas quanto recentes para tentar alcançar um novo estado de compreensão do outro, e principalmente, de criar neles uma importância que ela demorou a entender que possuíam.

 

Apesar de voltada para fora, para enxergar seus companheiros, essa ainda é uma jornada bastante íntima para Frieren, que passa a usar suas memórias para alcançar uma maior amplitude de si mesma, vencendo as partes menos interessantes de sua introspecção, assim como os compositores acrescentam sons ambientes ou mesmo barulhos de problemas de gravações antigas, como chiados e arranhões, para criar textura em suas trilhas de baixa fidelidade, gerando uma sensação de familiaridade combinada com nostalgia, ambos alcançado uma forma de amparo ou conforto, sem perder a tranquilidade original.

 

A obra não fala exatamente sobre a passagem do tempo, mas sim sobre como ele paira, como ele calmamente se estende diante de nós, tanto de forma positiva, demonstrando que com isso podemos aprender, conhecer, alcançar nossos objetivos e viver experiências incríveis, mas também de maneira negativa, de deixarmos passar coisas importantes por não percebermos que elas estão acontecendo neste exato momento, imaginando que teremos tempo para tudo depois.

 

Ler um de seus capítulos ou assistir a um de seus episódios tem uma certa semelhança com ouvir uma música do gênero lo-fi, com seus beats suaves e repetitivos, que criam um espaço mental muito semelhante: um lugar onde o tempo desacelera e a mente pode funcionar em outra velocidade, com outro nível de concentração e consciência.

 

Ambos oferecem, de certa forma, uma pausa desse mundo absolutamente acelerado em que vivemos, e que certamente criticam: Frieren com sua jornada contemplativa, e o lo-fi como trilha sonora para introspecção. Ambos nos dizem que há beleza na lentidão, que há profundidade na melancolia serena, e que o tempo, quando desacelerado, revela camadas que antes passavam despercebidas.

2 comentários


Volnei Freitas
Volnei Freitas
07 de out.

O uso do lo-fi como metáfora da existência élfica foi genial! Sinto os fluxos da narrativa, da música e da contemplação, ora melancólica, ora conscienciosa, como um convite à desaceleração e à observação consciente da vida. Parabéns, Tiago!

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Gabriel
06 de out.

Ótima análise! Sinto que as pessoas, às vezes, subestimam a capacidade que animes e animações têm de Especular. Frieren é uma obra completa, nos ensina muito sobre fantasia e jornada

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